DESEJOS

Os dois estavam ainda na cama, no escuro, ofegantes e realizados. Ambos pareciam mesmo satisfeitos. Quando a mulher diz:
—Jesus, se eu pudesse pedir algo agora, pediria para ser feliz com você.
O Homem olha para ela por alguns momentos e responde com um sorriso:
—Não és feliz comigo?! Pois eu iria mais longe, pediria para continuar vivendo somente, esta felicidade vive comigo faz tempo.
Abraçam-se contentes. Sabem que tudo tem seu valor e aquilo que sentem ninguém lhes tira.
Guilherme e Janete são casados. Porém cada um é casado com outra pessoa. Vivem juntos há muito tempo e por razões expostas não podem ou não querem abandonar seus cônjuges.
Como narradora, não me cabe julgar, absolver ou condenar. Não sou juíza. O que me facilita um relato imparcial dos fatos. No entanto não me vou impedir de ir fazendo os meus comentários pessoais, nada de grande importância para o desenrolar da história.
Guilherme e Janete se conhecem há dois anos e pouco. Ele era professor de artes e ela é professora de idiomas. Ele perdeu o emprego. Ela tem múltiplas funções. Ele cuida do pai idoso e da esposa, que se esforça para se livrar de distúrbios da depressão. É estranho como se pode ser feliz com pouco. Eles não podem mudar muito suas vidas, não sem magoar ou abandonar os que têm grande afeto e respeito por eles, então vão equilibrando-a de maneira muito útil. Quem disse que é fácil viver?
Mas na realidade ainda é mais difícil morrer, pois a mulher que está casada com Guilherme tenta há anos suicidar-se, mas sem qualquer resultado, o que realmente lhe dificulta a vida e não torna nada fácil a convivência com o marido, que está apaixonado por outra mulher, apesar de saber que a sua missão é tomar conta daquela com quem se casou. É mais fácil sermos felizes quando temos missões na vida, quando pensamos que ela tem sentido só porque fazemos falta a alguém. Guilherme é feliz, Janete pelo contrário, nunca poderá ser feliz, é emocionalmente inconstante, não vislumbra nenhum sentido para a vida, sente-se desgastada pelo trabalho e deseja sempre estar onde não está. Não é ambiciosa, nem nada que se pareça, mas não consegue anular em si esta faceta da cultura ocidental que não a permite deixar de desejar. Neste momento gostava de poder ser feliz com Guilherme, o que para ela quer dizer sentir por mais tempo do que nessas duas horas, que só existem os dois no mundo e que não é necessário mais nada.
É claro que seria sempre necessário algo mais, mas podiam ser coisas banais, como caldo verde e broa de Avintes, cerejas e romãs, figos da índia e maracujás, para satisfazer as sensações e relaxar o corpo. Também poderia escolher um clima outonal para viver, nas matas do Gerês, num moinho de água minhoto, com o rio a dar-lhe energia para colorir de idiomas a vida dos dois. Neste momento, já nem para ensinar se sente capaz, e se pudesse colocava à porta do gabinete da universidade: fechado para remodelação até que passe o calor!

Janete beirava aos cinquenta anos. Criara junto com seu marido uma boa família judia, viviam com certa tranquilidade agora, mas deram bastante duro, os dois, para criar seus filhos. No final das contas alguma coisa ficou para trás, pois o marido passou a ficar amargo e ressentido. Com isso a gentileza esmoreceu e com ela a intimidade foi se dissolvendo, de forma gradativa e constante. A mulher até que tentava resgatar a cumplicidade, era bem mais confortáveis continuarem juntos pois chegaram até aqui, quase trinta anos de vida comum... que pena, pensava ela. Era uma solidão a dois agora. Às vezes era bom, tudo parecia como nos velhos tempos, mas os altos e baixos do marido foram acabando com suas esperanças e qualquer tentativa de buscar ajuda psicológica era rejeitada com vigor.
Guilherme parecia um sonho, sabe aquela fantasia que a mulher tem? Alguém com quem repartir, sentir alegria, partilhar coisas simples, sem cobranças ou grandes responsabilidades? Ser movidos pela vontade somente, vontade de estar junto. Claro que aqui ninguém é criança. Amores são eternos enquanto duram, e uma hora um ou outro desperta.

Um dia destes Janete disse a Guilherme que ia tirar licença para cuidar da mãe, ela estava doente e morava no interior, mas ela não sabia por quanto tempo se demoraria por lá.
Se despediram os dois já com sabor de saudade, trocaram emails e foram cada um cuidar de seus afazeres. No princípio trocavam mensagens quase todo o dia e falavam-se mais do que quando estavam juntos. O tempo foi passando e as mensagens foram diminuindo. Havia coisas que Guilherme lhe omitia e outras coisas também Janete não lhe dizia. Guilherme tivera que internar sua esposa num hospital psiquiátrico, por ordens médicas e a pedido dela própria, que estava cansada de se sentir infeliz. Ficava mortificado pelo estado de sua companheira e amiga de tantos anos. Ficava o máximo que podia a seu lado, levava-lhe seus docinhos preferidos um dia, no outro um CD com suas músicas prediletas, flores, etc... Janete, por sua vez, também tinha seu quinhão. Estava doente e seu afastamento foi por sua própria causa, câncer, disse-lhe o médico. Tinha de fazer quimioterapia para diminuir o tamanho do nódulo e depois extirpá-lo. Ela pensava que não tinha cabimento contar isso a Guilherme, que já tinha tantas preocupações.
Passaram-se vários meses, quase um ano, Guilherme estava mais sereno agora. A sua querida esposa estava muito melhor, voltara para casa, porém com frequência voltava ao hospital, para controlo somente. O pai estava tranquilo também. Às vezes ele mandava email para Janete, a que ela nem se dignava a responder. Procurava compreendê-la, na medida em que ele também andara ocupado demais com sua própria família, mas as saudades atormentavam-no. — Será que ela ainda me ama? Será que a paixão se esvaiu? Será que não tem acesso à Net e não lê os meus mails? Será que sua mãe recuperou? Ele se perguntava.
Uma manhã, Guilherme recebe um telefonema dizendo que surgiu uma vaga para leccionar numa universidade do centro. Todo contente, ele pensa: só faltava isso, meu Deus, coisa boa! No primeiro dia de trabalho, na sala dos professores é apresentado a todos cordialmente. Formalidades à parte, ele olha em volta, se dirige à máquina de café. O ambiente é acolhedor e sóbrio. As paredes estão repletas das fotografias de professores. Guilherme vê uma foto em especial, era Janete. Com voz vacilante pergunta:
— São fotos atuais estas?
—Foram tiradas têm dois anos. Há professores que nem estão mais aqui — responde um colega
Sem pensar muito, Guilherme aponta para a foto de Janete:
—Esta moça trabalha aqui?
—Não, infelizmente esta faleceu tem uns seis meses. Coitada!
Guilherme fica pálido, sente-se desfalecer, apoia-se no sofá, deixa passar uns minutos até recuperar a voz:
—Foi acidente?
— Nada, foi câncer mesmo. Quando ela soube se licenciou para tratamento e não voltou mais. Ficamos sabendo de seu falecimento pela sobrinha, que trabalha aqui perto. Tenho que ir Guilherme. Um bom dia para você!
Guilherme ficou ali olhando aquela foto por algum tempo ainda, e as lágrimas escorriam de seus olhos.

Não conseguia entender como poderia ela ter morrido sem ele ter sentido que ela estava em sofrimento. Nos dias seguintes perdeu os sorrisos, a fome, o sono, a vontade de viver. Compreendeu que fora a paixão por ela e o amor que os ligava que o tinha motivado a continuar. Tudo deixou de fazer sentido, a mulher com depressão, o pai senil, a casa desarrumada, o trabalho. Quando foi visitar a campa dela, pediu-lhe mil vezes perdão por não a ter acompanhado até ao final dos seus dias, afinal nunca amara tanto nenhuma outra mulher como a ela!
Foi nesse ano que se converteu ao budismo, que aceitou as suas nobres verdades: que o apego provoca sofrimento, que os desejos provocam sofrimento, que para este acabar é necessário parar de querer, quando isso acontece as nossas atitudes passam a ser corretas, estamos prontos para atingir o nirvana. Não foi o que aconteceu, mas pelo menos conseguiu libertar-se dos pesadelos que o atormentavam e da culpa que sentia sempre que pensava nela. Passou a recordar apenas o que de bom acontecera entre ambos e deixou de se penalizar constantemente por não a ter raptado, por não terem fugido juntos para o Gerês, onde ela sonhava vir um dia a viver com ele.

Guilherme tornou-se um professor exemplar, porque todas as suas energias se concentraram no trabalho. Tentou ensinar a todos os seus alunos a importância de nos deixarmos levar pelas paixões e pelo amor, de não deixarmos escapar os momentos e as pessoas que nos são mais queridas, de não desejarmos mal a ninguém e de fazermos tudo o que pudermos pelo bem dos outros em geral. Passado uns anos a mulher com quem se casara acabou finalmente por se conseguir suicidar, encharcada de comprimidos num hospital psiquiátrico, o pai morreu de velhinho, Guilherme vendeu as casas, onde nascera e onde vivera, viajou para o Butão, lugar que escolhera para ficar a viver o resto dos seus dias. Imaginava-se muitas vezes a conversar com ela antes de adormecer, mas agora já consegue dormir sossegado e sente-se o homem mais apaziguado do mundo.
Guerreira Xue/Paulaj


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