Diferenças Do Olhar

Às vezes, chorar era a única saída que Sofia encontrava para aliviar suas dores. Isso era como se as lágrimas pudessem lavar suas feridas de alma.
Uma vez, há muitos anos, a pequena Sofia perguntou para a mãe se o amor existia.
— Claro que o amor existe menina, mas, tu és cega, e os cegos nunca são amados. Então reze para nunca se apaixonar, porque mais difícil do que ser cega, é não ser correspondida. E não pensa também que só os cegos não são amados. Pergunte para qualquer um, e entenderás que o amor não vem para todos, e isso é de certeza minha filha.
Sofia tinha pena, de si e da mãe, porque sentia a amargura dela na pronúncia daquelas palavras tão tristes.
Ser cega ainda não era seu maior problema. A Sofia sabia que se um dia alguém chegasse a conhecê-la de verdade poderia até gostar da moça simples que vivia num mundo mais imaginário do que real. Um mundo que era percebido pelo toque, pelos ouvidos, pelo cheiro, paladar e não visto pelo olhar, pois, tudo que se toca sem ver é sentido com mais intensidade. Quem se vale de boa visão, tem lá suas dúvidas. Será?
O único amigo que Sofia conhecia a fundo era Mario, o vizinho que residia na frente de sua casa. Cresceram juntos e ele não era cego evidentemente. O Mario, desde garoto, era obcecado pela falta de visão de Sophia, tinha uma curiosidade imensa de saber como ela "via" as coisas em volta, sem olhar com os olhos, assim como todos os demais que conhecia.
Depois da infância, Sofia nunca mais tivera um amigo tão próximo. Às vezes, ela sonhava com o amigo e o via perfeitamente no sonho. E por tanto que o vira, tocando-lhe o rosto acordada.
Lembrava da primeira vez que pediu para toca-lo, ele ficou preocupado, seu coração disparava e Sofia rindo dizia-lhe. — Fique calmo, não vou tirar-te nenhum pedaço.
— Eu sei que não, é que não sou muito bonito mesmo. — E dava aquela risadinha insegura...
Depois de toca-lo ela ficou em silêncio ao que ele retrucou: — Eu te avisei que era feio.
— Pois tu és um mentiroso, tens um rosto lindo e gostei de seu sorriso também.
Quando Sofia menos esperava ele irrompia pelo quarto feito um furacão.
— Sabe que vamos fazer hoje? Quero brincar de esconde- esconde contigo, e trouxe meus primos também. Quero ver se hoje tu me encontras mesmo com outros por perto.
Mario achava aquilo uma "coisa". Como poderia uma cega encontrar alguém escondido? —Não é possível isso, tu enxergas sim e estás me enganando! —  E Sofia ria tanto. — Quantas vezes vou ter que repetir seu bobão? Que escuto o teu coração, tua respiração e ainda tem teu perfume, o teu cheiro é diferente.
— Pois hoje tem meus primos e vou te confundir um pouco, tenho certeza. Eles estão usando roupas minhas, meu perfume e até meu sabonete. Sofia se divertia muito com eles. 

"Que saudades do Mário, saudades do meu amor".
Mário foi de viagem estudar na Europa e nunca mais voltou, e se casou por lá mesmo, com uma moça linda e que não era cega.
Sofia pensava em Mário com frequência ultimamente, porque seriam estas lembranças tão fortes e sentidas agora?

Certa vez, era verão e o Mário andava estranho, talvez, fosse a mudança repentina para a Europa. Disse-lhe Sofia que ficasse tranquilo, pois ela sempre que pudesse escreveria para ele, mas, não era bem isso que o atormentava...
— Estou gostando de uma garota no colégio, e eu queria poder dizer a ela antes de ir viajar. — E qual problema? — Disse Sofia contrita.
— Dai que sou bobo e sem graça, e com certeza ela vai rir de toda esta bobagem.
— Se ela achar isso de ti, então deve ser uma toupeira idiota. — Ele riu-se do comentário. — Vou te levar lá e tu falas-lhe tudo que ela perde, em não me namorar tá!.
— Olha Mario, pense que se não viver seus sentimentos, tu nunca vais saber se são reais ou tua imaginação somente. Quantas oportunidades achas que terá? Podes escolher, entre te arrependeres do que fez ou do que não fez. Se ela disser não, paciência! Eu não diria.
No momento seguinte, sem qualquer explicação plausível, os dois se beijaram ali e um mundo de vontades e desejos se abriu entre ambos arrastando-os para a cama, aquilo era louco e ao mesmo tempo maravilhoso.
Desde este dia, Sofia e Mario não falaram nada sobre o que se passou entre eles. Era como se o que aconteceu tivesse sido um sonho, que ficou só na lembrança dos dois.
Nem a Sofia ficou sabendo da moça, a tal que ele estava gostando, ou se ele chegou a dizer qualquer coisa para ela. Mas, sempre que podiam, os dois estavam juntos.
Um mês depois ele viajou para a Europa e como prometido, sempre que podia, a Sofia escrevia para ele, e ele respondia na mesma intensidade.
Depois de formado, Mario resolveu se estabelecer pela França, pois estava noivo de uma francesa e iriam se casar na primavera.
"Lembro-me que chorei muito ao saber disso".
As suas cartas que antes eram assíduas, foram rareando até que um dia uma delas retornou por não encontrar o endereço. "E o meu único homem me esqueceu"...
Os pensamentos de Sofia são interrompidos por batidas na porta.
— Hora do chá Dona Sofia, elas estão esperando.
E aquelas crianças adoravam a vovó Sofia. O curioso  é como uma senhorinha cega dirigia com eficiência um orfanato com uma centena de pequeninos.
Talvez, o amor não precise de olhos.

"O amor existe sim mamãe, e os cegos também encontram sua própria maneira de serem amados".

@Guerreira xue



Comentários

  1. Perfeitamente lindo!!!
    Parabéns minha querida!
    Paz e bem,
    Celeste Farias.

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  2. Obrigada por suas palavras e seja sempre bem vinda!:-))

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  3. Que maravilha de narrativa! Deixo-te um segredo: emocionaste-me.
    Uma proposta: não pares!
    Um abraço amigo.

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  4. Ai José, fico imesamente grata pelo carinho amigo.Obrigada pelo apoio também.:-))
    Saiba que escrever sobre Sofia foi deveras dolorido.Um personagem que apesar dos revezes da propria vida ainda consegue se doar de maneira que vai se descobrindo,com o passar do tempo,amada.

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  5. Um sonho que ficou só na lembrança de ambos ... Contos que encantam em cantos e pensamentos! Breve e doce vida que aninha amizades em momentos como este! Abraços de paz ...

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