A MUDEZ DE DEUS
Da minha janela observo o rio a encher-se de água e a
manhã a alagar-se de luz.
Ainda há pouco a alvorada me entrou
nos olhos com a sua ilusória beleza navegante.
E eu não quis chorar.
Ao longe gritam anjos maduros com
as suas bocas claras de brusquidão.
Levanto-me e desço as escadas vendo
desfilar na minha frente pássaros avermelhados que esperam de Deus o
milagre da fala.
Sei que esse milagre nunca chegará.
Por isso Deus é uma eterna
desilusão para as aves.
Debaixo da ponte corre a água que
transporta as memórias.
As ruas esperam-me submersas na sua
calma.
Eu coleciono passos. Sou um adorador
de silhuetas.
Sou um colecionador de olhares. Sou
um guardador de sorrisos.
Sou um adulador de gestos.
Toda a terra chega quente aos meus
sentidos.
O rio continua a encher.
Escuto um júbilo triste nas
canções que enfeitam os caminhos.
Os comboios da infância chegam
envoltos numa névoa rosada.
E com eles acodem as vozes
angustiadas do mundo.
Os cães trazem espelhada nos olhos
a sua angústia animal.
E sofrem. Também eles esperam que
Deus lhes conceda o dom da fala.
Mas eu sei que esse milagre não
está ao alcance do Criador.
Por isso Ele é uma desilusão
imortal.
No rio, a água rumoreja e um vento
frio apodera-se do meu coração.
Este já não é o mesmo vento que
ontem anunciou a tarde.
Este vento passa velozmente pelas
árvores que esperam de pé há séculos que Deus lhes outorgue o dom
da fala.
Mas eu sei que isso não está nos
seus propósitos.
A manhã passa depressa, como se
fosse uma nuvem impelida por um vento superior.
Agora é o rio que geme.
Os sonhos escondem-se nos caminhos.
A noite vai chegar fria e solitária
e Deus teimará de novo em vigiar os seus filhos prodigiosos para
depois se ir esconder no fundo do céu.
Deus enlouqueceu. Já é Ele que
reza para que os seus prodigiosos filhos lhe perdoem.
Tenta esquecer as culpas
supliciadoras e cruéis do Antigo Testamento.
Os cães adormeceram dentro da sua
paciência.
Os pássaros avermelhados descansam
as suas asas de desalento, enquanto debicam palavras manuscritas nos
livros antigos.
As árvores diluvianas ressuscitam
prontas a combater a chuva.
As pombas da Santíssima Trindade
persistem no seu arrulho interminável.
Fernando Pessoa dorme no quarto ao
lado vigiado por Eros e Psique.
Uma família de poetas acrobatas
fabrica um trapézio feito de nuvens.
Obscuras borboletas assinalam o
caminho da loucura.
Os mortos viajam no seu tempo eterno
de esquecimento.
Os mares nunca mais voltarão a ser
tranquilos.
Nem os sonhos. Nem a voz
imponderável de Deus.
Por isso Ele semeia nas galáxias os
buracos negros.
Eu nascerei noutro corpo, no meio de
uma vegetação delicada, onde pequenos deuses que cheiram a
eucalipto levantarão os seus exércitos e invadirão a Terra.
O nosso planeta renascerá ébrio e
delirante para que tudo volte a ser igual.
Eu já não tenho receio dos meus
equívocos.
Vivo rodeado de livros que são
barcos e que me trazem mensagens de paixões semeadas de memórias
onde fêmeas magníficas devoram machos eficazes e onde os pássaros
avermelhados se deixam devorar pelos cães na sua vigília de solidão
enquanto são observados pelas árvores do esquecimento.
As mulheres semeiam choros.
Os homens podam angústias.
As crianças destroem os caminhos
das formigas.
Agora sei a razão de Deus ser mudo.
O Poema Infinito (143): A Mudez De Deus
De João Augusto Madureira Ferreira
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