MARIALVA
Irritada com o frio, e sem muita alternativa Joana ia ter que encarar uma viagem de 18 horas dentro de um coletivo que seguia de São Paulo para o Rosário Do Sul. Então munida de muita roupa e um livro do Saramago; o dia da morte de Ricardo Reis, ela não muito conformada dirigia-se a estação rodoviária. “Que porcaria"!
A tia estava doente e pediu que Joana fosse, e tinha como negar isso? Pois a tia Maria era idosa e Joana adorava aquela velhinha, alias Joana só tinha duas tias por parte de pai, ainda vivas. Estavam no meio do ano e sem muito dinheiro para custear avião e ônibus e mais taxi, teve mesmo é que ir de ônibus, porque pagava uma coisa só e chegava claro, só que demorava um bocado mais também.
Agora que estava a caminho a moça respirou aliviada. E já abrindo seu livro quando ouviu a voz a seu lado; — Ainda bem que o tempo está bonito, não?
Acenando positivamente Joana nem se dignou a olha-la, e continuou com a leitura. E sem se fazer de rogada a moça estendeu a mão para cumprimentá-la; — Me chamo Marialva, muito prazer!
Beirando as lágrimas Joana pensou desconsolada: "Isso vai ser uma longa viagem". E forçando um sorriso, ela a cumprimentou também; — Igualmente Marialva.
Marialva esperava que ela dissesse seu nome e ela sabia disso, mas não disse. Continuando a olhar para o livro, e já com pouca esperança, Joana retoma a leitura, só para contrariar.
A companheira de viagem era barulhenta, e logo estava mastigando biscoitos e bebendo ou suco ou água. Sem jeito para se concentrar na leitura Joana resolveu apreciar a paisagem enquanto ainda era dia. Marialva carregava uma mala térmica que, provavelmente era mais pesada que a bagagem de roupas. Risos... Após rejeitar, agradecendo seu oferecimento de juntar-se a ela na comilança Joana liga os fones ao radio celular, e encerra de vez o contato imediato. Não demorou muito e ela cochilava ...Sabe aquela coisa mole e gostosa! Estava sonhando penso eu, e adivinha? Dona coisinha a chamava, para perguntar-lhe se ia descer para jantar; — Claro, e obrigada por me acordar!
Disse-lhe mal conseguindo se conter. Sentaram juntas no restaurante, e em dado momento Joana não se conteve, e perguntou-lhe; — Onde tu vai descer Marialva? — Vou até Uruguaiana e tu? — Desço em Rosário Do Sul. Responde Joana desolada. Ia ter que atura-la então, pois Uruguaiana era depois de sua parada... O bom é que Marialva conversava sozinha mesmo, Joana dava aquele sorrisinho "congelado", acenava positivamente quando conveniente ou negativamente, e a viagem foi indo... Quando finalmente as luzes se apagaram e todos pareciam dormir, a matraqueira silenciou e Joana também adormeceu.
Era madrugada ainda e o ônibus estava parado na rodovia. Um caminhão havia tombado na pista. Mais atrasos... Depois de fazer sua higiene Joana pega seu livro e começa a leitura deslizando mansamente para o mundo da literatura.
— Puxa vida, ainda estamos aqui? Joana finge nem ser com ela o assunto. Nervosa, Marialva retruca.
— Tu deve gostar muito de ler hein! Prefere a companhia dos livros a das pessoas...
Joana se irrita visivelmente; — Tu precisa de alguma coisa Marialva? — Não, claro que não. Só esperava que fôssemos mais cordiais, uma vez que viajamos juntas tem mais de dez horas. Abismada Joana olha para a mulher como se a visse pela primeira vez. — Que quer dizer? Já conversamos muito, e desde que entrei neste coletivo, nem deixa-me respirar, esta sempre querendo conversa e, sinto-me como se fosse obrigada a dar-lhe atenção. — Áh muito obrigada por isso! Nem teu nome tu se dignou a me dizer! Olhavam-se com raiva por alguns instantes, até que... Explodiram em risadas...
Joana se rende; —Tudo bem talvez eu tenha sido descuidada quanto a isso, me desculpe. Chamo-me Joana, e prazer em conhece-la. E ela estendeu a mão sorrindo abertamente, pela primeira vez.
Na cabeça de Marialva era impossível alguém preferir ler do que conhecer pessoas. " que moça estranha!” — Aposto que as histórias de pessoas reais são muito melhores que estas baboseiras dos livros. Surpresa coma observação joana retruca; — Não gostas de livros Marialva? — Não gosto e nem desgosto, só não os leio. Joana não ficou surpresa, pois sabia que a maior parte dos brasileiros não tem habito de leitura; — Olha eu não sou boa de conversa, mas sou boa ouvinte. E quero uma boa historia real agora, portanto capriche. Disse Joana em tom de desafio enquanto guardava seu livro.
Atarantada Marialva retruca: — E por onde eu começo? — Pelo principio ora. De onde tu é?
Nasci no município de Queimadas na Bahia. Vim morar em São Paulo já casada com o "estrupício" do meu ex marido...Tenho três filhos e tenho netos também, que amo de paixão.— Seus familiares ainda moram lá? — Alguns, meus pais já morreram... Meu pai morreu primeiro, pois era muito mais velho que a minha mãe. Era um mestiço de português com árabe, raça ruim mesmo!
Sabe que o povo de lá, era na maioria miserável. Então quem tinha muitos filhos e não podia criar, distribuía para quem tinha condições. E às vezes nem eram aquelas "condições". Se tivessem comida para alimentar o pequeno, já bastava para ser presenteado com um "enjeitadinho", que ao final tinha que ser serviçal, para pagar pelo sustento. — E isso aconteceu com teus pais?— Aconteceu com a minha mãe que foi entregue para um casal foi e quando ela cresceu um pouco, o homem não queria que ela pedisse-lhe a benção, e sim que deitasse com ele. E assim foi... A minha mãe teve quatro filhos, e todos os quatros foram distribuídos, incluindo eu. — Por quê? — Vou saber? Meu pai era um velho, não podia sustentar todos, era um preguiçoso, e minha mãe coitada, não podia dizer nada, não tinha trabalho, e ela também não sabia fazer nada. Eram outros tempos aqueles...
Joana ficou muda, escutando aquela história que mais parecia um dos personagens de vidas secas.
— E a minha mãe cuidou da mulher dele, do meu pai, até ela ficar velhinha e morrer, pensa isso!
O meu pai era um vendedor de porta em porta sabe, e minha mãe sempre o acompanhava. E eu me lembro como se fosse hoje, quando eles passavam na frente da casa da mulher onde eu fui criada. Eu gritava e chorava, implorava para me levarem com eles. Até hoje não consigo esquecer, aquele sentimento de abandono me persegue.
Como para interromper a comoção de Marialva, Joana pergunta: — Então você já grandinha quando eles te "deram"? — Eu tinha cinco anos. Minha sorte que a mulher que me criou, foi muito boa e me ensinou dignidade, me fazia trabalhar desde pequena. Tanto que nunca deixei faltar nada para os meus filhos.Voltando aos meus pais... Quando a minha mãe teve sua ultima filha, ela achava que o velho ia criar essa, ele prometera, pois só havia os dois em casa agora. Pois o infeliz deu um jeito, e desapareceu com a pequena sem ela saber. Foi ai que ela perdeu o juízo de vez. Os olhos de Marialva brilhavam... —Éramos todos grandes já quando ela morreu. Uma história triste, não? Pois tem aos montes destas, espalhadas pelo sertão mocinha, todas muito reais e a maioria sem finais felizes.
Todos nós carregamos marcas de um passado, pesado, doído e dilacerado. Por isso que tive que largar o cretino do meu marido, acredita! Ele sabia de minha história, só achava que podia usar isso para me diminuir na sua presença. A gota d'agua foi quando pensou que podia me bater.
Como tu vê Joana, temos passado e não negamos, mas temos presente também. E hoje não somos mais crianças. — É verdade Marialva. E os teus irmãos mantém contato então? — Sim... Falamo-nos e visitamo-nos com frequência. Respondeu sorrindo. — Que coisa essa tua vida mulher! Que bom também que superaram tudo e tocaram em frente. E quer saber, fico admirada mesmo, pois juntar pedaços de vida espalhados é muito difícil no entanto vocês parecem ter conseguido quando parecia mais fácil não fazer e continuar sofrendo por coisas do passado.Quando criança não há muita opção pois dependem dos adultos, mas todos crescem e viram adultos...
E Joana realmente não pegou mais o livro durante aquela viagem. E quando chegaram a Rosário ambas trocaram telefones, emails e despediram-se como se fossem velhas amigas.
— Na próxima vez, quero ouvir a "sua história" Jô!
— A minha é muito sem graça Marialva!
Eu desci em Rosário e Marialva seguiu o destino dela e tornou-se inesquecível.
Guerreria Xue/Hilda Milk
Imagem Net
A tia estava doente e pediu que Joana fosse, e tinha como negar isso? Pois a tia Maria era idosa e Joana adorava aquela velhinha, alias Joana só tinha duas tias por parte de pai, ainda vivas. Estavam no meio do ano e sem muito dinheiro para custear avião e ônibus e mais taxi, teve mesmo é que ir de ônibus, porque pagava uma coisa só e chegava claro, só que demorava um bocado mais também.
Agora que estava a caminho a moça respirou aliviada. E já abrindo seu livro quando ouviu a voz a seu lado; — Ainda bem que o tempo está bonito, não?
Acenando positivamente Joana nem se dignou a olha-la, e continuou com a leitura. E sem se fazer de rogada a moça estendeu a mão para cumprimentá-la; — Me chamo Marialva, muito prazer!
Beirando as lágrimas Joana pensou desconsolada: "Isso vai ser uma longa viagem". E forçando um sorriso, ela a cumprimentou também; — Igualmente Marialva.
Marialva esperava que ela dissesse seu nome e ela sabia disso, mas não disse. Continuando a olhar para o livro, e já com pouca esperança, Joana retoma a leitura, só para contrariar.
A companheira de viagem era barulhenta, e logo estava mastigando biscoitos e bebendo ou suco ou água. Sem jeito para se concentrar na leitura Joana resolveu apreciar a paisagem enquanto ainda era dia. Marialva carregava uma mala térmica que, provavelmente era mais pesada que a bagagem de roupas. Risos... Após rejeitar, agradecendo seu oferecimento de juntar-se a ela na comilança Joana liga os fones ao radio celular, e encerra de vez o contato imediato. Não demorou muito e ela cochilava ...Sabe aquela coisa mole e gostosa! Estava sonhando penso eu, e adivinha? Dona coisinha a chamava, para perguntar-lhe se ia descer para jantar; — Claro, e obrigada por me acordar!
Disse-lhe mal conseguindo se conter. Sentaram juntas no restaurante, e em dado momento Joana não se conteve, e perguntou-lhe; — Onde tu vai descer Marialva? — Vou até Uruguaiana e tu? — Desço em Rosário Do Sul. Responde Joana desolada. Ia ter que atura-la então, pois Uruguaiana era depois de sua parada... O bom é que Marialva conversava sozinha mesmo, Joana dava aquele sorrisinho "congelado", acenava positivamente quando conveniente ou negativamente, e a viagem foi indo... Quando finalmente as luzes se apagaram e todos pareciam dormir, a matraqueira silenciou e Joana também adormeceu.
Era madrugada ainda e o ônibus estava parado na rodovia. Um caminhão havia tombado na pista. Mais atrasos... Depois de fazer sua higiene Joana pega seu livro e começa a leitura deslizando mansamente para o mundo da literatura.
— Puxa vida, ainda estamos aqui? Joana finge nem ser com ela o assunto. Nervosa, Marialva retruca.
— Tu deve gostar muito de ler hein! Prefere a companhia dos livros a das pessoas...
Joana se irrita visivelmente; — Tu precisa de alguma coisa Marialva? — Não, claro que não. Só esperava que fôssemos mais cordiais, uma vez que viajamos juntas tem mais de dez horas. Abismada Joana olha para a mulher como se a visse pela primeira vez. — Que quer dizer? Já conversamos muito, e desde que entrei neste coletivo, nem deixa-me respirar, esta sempre querendo conversa e, sinto-me como se fosse obrigada a dar-lhe atenção. — Áh muito obrigada por isso! Nem teu nome tu se dignou a me dizer! Olhavam-se com raiva por alguns instantes, até que... Explodiram em risadas...
Joana se rende; —Tudo bem talvez eu tenha sido descuidada quanto a isso, me desculpe. Chamo-me Joana, e prazer em conhece-la. E ela estendeu a mão sorrindo abertamente, pela primeira vez.
Na cabeça de Marialva era impossível alguém preferir ler do que conhecer pessoas. " que moça estranha!” — Aposto que as histórias de pessoas reais são muito melhores que estas baboseiras dos livros. Surpresa coma observação joana retruca; — Não gostas de livros Marialva? — Não gosto e nem desgosto, só não os leio. Joana não ficou surpresa, pois sabia que a maior parte dos brasileiros não tem habito de leitura; — Olha eu não sou boa de conversa, mas sou boa ouvinte. E quero uma boa historia real agora, portanto capriche. Disse Joana em tom de desafio enquanto guardava seu livro.
Atarantada Marialva retruca: — E por onde eu começo? — Pelo principio ora. De onde tu é?
Nasci no município de Queimadas na Bahia. Vim morar em São Paulo já casada com o "estrupício" do meu ex marido...Tenho três filhos e tenho netos também, que amo de paixão.— Seus familiares ainda moram lá? — Alguns, meus pais já morreram... Meu pai morreu primeiro, pois era muito mais velho que a minha mãe. Era um mestiço de português com árabe, raça ruim mesmo!
Sabe que o povo de lá, era na maioria miserável. Então quem tinha muitos filhos e não podia criar, distribuía para quem tinha condições. E às vezes nem eram aquelas "condições". Se tivessem comida para alimentar o pequeno, já bastava para ser presenteado com um "enjeitadinho", que ao final tinha que ser serviçal, para pagar pelo sustento. — E isso aconteceu com teus pais?— Aconteceu com a minha mãe que foi entregue para um casal foi e quando ela cresceu um pouco, o homem não queria que ela pedisse-lhe a benção, e sim que deitasse com ele. E assim foi... A minha mãe teve quatro filhos, e todos os quatros foram distribuídos, incluindo eu. — Por quê? — Vou saber? Meu pai era um velho, não podia sustentar todos, era um preguiçoso, e minha mãe coitada, não podia dizer nada, não tinha trabalho, e ela também não sabia fazer nada. Eram outros tempos aqueles...
Joana ficou muda, escutando aquela história que mais parecia um dos personagens de vidas secas.
— E a minha mãe cuidou da mulher dele, do meu pai, até ela ficar velhinha e morrer, pensa isso!
O meu pai era um vendedor de porta em porta sabe, e minha mãe sempre o acompanhava. E eu me lembro como se fosse hoje, quando eles passavam na frente da casa da mulher onde eu fui criada. Eu gritava e chorava, implorava para me levarem com eles. Até hoje não consigo esquecer, aquele sentimento de abandono me persegue.
Como para interromper a comoção de Marialva, Joana pergunta: — Então você já grandinha quando eles te "deram"? — Eu tinha cinco anos. Minha sorte que a mulher que me criou, foi muito boa e me ensinou dignidade, me fazia trabalhar desde pequena. Tanto que nunca deixei faltar nada para os meus filhos.Voltando aos meus pais... Quando a minha mãe teve sua ultima filha, ela achava que o velho ia criar essa, ele prometera, pois só havia os dois em casa agora. Pois o infeliz deu um jeito, e desapareceu com a pequena sem ela saber. Foi ai que ela perdeu o juízo de vez. Os olhos de Marialva brilhavam... —Éramos todos grandes já quando ela morreu. Uma história triste, não? Pois tem aos montes destas, espalhadas pelo sertão mocinha, todas muito reais e a maioria sem finais felizes.
Todos nós carregamos marcas de um passado, pesado, doído e dilacerado. Por isso que tive que largar o cretino do meu marido, acredita! Ele sabia de minha história, só achava que podia usar isso para me diminuir na sua presença. A gota d'agua foi quando pensou que podia me bater.
Como tu vê Joana, temos passado e não negamos, mas temos presente também. E hoje não somos mais crianças. — É verdade Marialva. E os teus irmãos mantém contato então? — Sim... Falamo-nos e visitamo-nos com frequência. Respondeu sorrindo. — Que coisa essa tua vida mulher! Que bom também que superaram tudo e tocaram em frente. E quer saber, fico admirada mesmo, pois juntar pedaços de vida espalhados é muito difícil no entanto vocês parecem ter conseguido quando parecia mais fácil não fazer e continuar sofrendo por coisas do passado.Quando criança não há muita opção pois dependem dos adultos, mas todos crescem e viram adultos...
E Joana realmente não pegou mais o livro durante aquela viagem. E quando chegaram a Rosário ambas trocaram telefones, emails e despediram-se como se fossem velhas amigas.
— Na próxima vez, quero ouvir a "sua história" Jô!
— A minha é muito sem graça Marialva!
Eu desci em Rosário e Marialva seguiu o destino dela e tornou-se inesquecível.
Guerreria Xue/Hilda Milk
Imagem Net
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