«O VULTO DO PASSADO»

«O VULTO DO PASSADO»

Leonor acabou de dar banho à filha, a papa espalhada por todo o lado. Mudou-lhe a fralda, meteu-a no carrinho para a deixar no infantário, antes de seguir para as aulas, na Faculdade.
Toque estridente da campainha. Era a Dona Angelina, a vizinha do lado:
– Menina Leonor, tem o rádio ligado?
Não tinha. Não sabia de nada, não senhora.
– Está uma revolução na rua! Sabe-se lá o que virá aí!
– Pior do que já temos não pode vir! Olhe que não pode, não, Dona Angelina!
– Sabe-se lá, menina Leonor! Sabe-se lá! Ele há coisas…
A vizinha atravessou o patamar pouco confiante: - Estes estudantes são sempre contra o governo, sabe-se lá, se esta Leonor estudante e professora será também de confiança! Simpática ela é, sim senhora, e prestável, por mais de uma vez me ajudou a trazer os sacos das compras da loja ali em frente. Mas se for política, cruz credo, Deus me livre e guarde! E benzia-se, invocando Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Vêem-se caras, não se vêem corações, Dona Angelina franzia o sobrolho enquanto dava duas voltas à chave, não fosse o diabo tecê-las, e a revolução entrar-lhe de portas adentro. Sabe-se lá!
Leonor liga o rádio, “posto de comando das Forças Armadas”, e o coração enche-se de esperança. Chegou ao infantário e deu com o nariz na porta. Um letreiro dizia: «Encerrado por segurança.» Voltou para casa. Viu as imagens do Carmo na televisão, avistou o companheiro em cima de uma árvore, olha o pai, olha o pai… O pai à noite chegou cansado.
– Conta lá, conta lá, tive de ficar aqui em casa todo o santo dia, o infantário fechado, a menina a pedir colo num berreiro desatado!
Seis dias depois, Leonor embrulhou a filha num xaile traçado entre a cintura e os ombros, e levou-a à manifestação do 1º de Maio. Para se habituar à Liberdade, pensou. A criança não chorava nem tinha medo da vozearia dos altifalantes. Fixava os olhos muito abertos ora nas bandeiras vermelhas, agitadas pelo vento da esperança, ora nos cartazes que não podia ler: «O povo já não tem medo!», «Fascismo nunca mais!», «25 de Abril sempre!»

Passaram velozes quarenta anos na vida de Leonor. Traz ainda a pasta pesada de livros, mas já vazia de sonhos. Reformou-se de professora, mas continua a trabalhar graciosamente (estranha palavra!) no Centro de Investigação da Faculdade. Nada do que faz poderá ser remunerado. A legislação é clara para ela, bem menos clara para altos funcionários do governo. Dá-lhe um nó no estômago saber que prescreveu a coima do Banco de Portugal ao grupo de fiéis seguidores do beatífico Jardim Gonçalves, locupletado com a choruda reforma de cento e setenta e cinco mil euros, tenho de escrever por extenso, não vá alguém julgar que me enganei nos números. Quem confiou nele é que foi enganado. Um escândalo num país de pobreza galopante, mas de memória curta. Austeridade, antiga palavra de conventos, é agora a medida por onde se apertam os cintos. Avizinham-se mais cortes nas pensões, ouviu-se o veredicto a sair do sorriso Pepsodent, já algo embotado, daquele rapaz, primeiro-ministro que tinha dez anos no 25 de Abril e que não conheceu a miséria salazarenta. Leonor conhece o pai dele - médico, escritor, transmontano de boa cepa -, o filho não lhe herdou as qualidades. Hélas!
Vai agora apanhar o metro na Cidade Universitária; avista ao longe, os doze degraus da cantina. Esses continuam sólidos. Leonor fecha os olhos e vê o vulto do passado a rolar na escada.

Teresa Martins Marques, in POEIRA DO TEMPO (11)
                                         


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