CASA DE PAPELÃO

Depois das chuvas os moradores de rua se mobilizam entre as ruas da Direita e São Bento para reconstruir suas "casas", e a disputa por um espaço e papelão é acirrada nas portas recém-fechadas das lojas no centro da cidade. São adultos e crianças correndo, para conseguir uma cama seca antes que o dia termine.

Ana é assistente social, e muito acostumada com a rotina das ruas observa, aquelas são pessoas a mercê do tempo e da disposição alheia. Ela sabe que não há como mantê-las em abrigos ou instituições. A seu entender a "rua" parece surtir um efeito encantador sobre as pessoas que nela vivem.
 A moça lembra do seu tempo de garota. "Vai menina, sai a pedir logo, pois os teus irmãos estão com fome". Dizia-lhe a mãe. Eram mendigas porque a mãe não tivera sorte na vida. O marido, seu pai, foi uma nulidade que se apossou da fortuna da esposa, e desapareceu abandonando-a com dois filhos pequenos e outro ainda na barriga.
Quando era criança Ana se perguntava sonhadora. "De que serão feitas as casas?" Pois via cada uma delas diferente da outra. Eram casas de tijolos, de madeira, algumas eram grandes, outras nem tanto. Ela não conhecia seus residentes, mas tinha certeza eram felizes dentro das casas. e os filhos tinham um pai amoroso, uma mãe cheirosa, uma comida feita com amor, e em noites frias do inverno ficavam quentinhos em suas cobertas, e não faltavam sapatos com farturas de beijos e abraços.
"Um dia vamos ter uma casa e não vai ser igual a esta, de papelão”. Porque quando chovia ficavam sem.

E a mãe escondia-se estrategicamente com os filhos menores, enquanto Ana pedia para as donas, daquelas casas lindas, um abrigo só até a chuva passar. "Algumas sequer atendiam a porta, outras davam-me um pedaço de pão e despachavam-me debaixo da chuva mesmo, e claro que eu pegava o pão, parecia que andávamos sempre com fome, e andávamos mesmo.
Eram poucas às vezes conseguiam um canto seco para dormir, mas em geral era debaixo das marquises das lojas do centro da cidade que encontravam algum abrigo. E quando ficavam tristes por não conseguir que alguém os ajudasse a sair da chuva, era para animar a menina Ana disparava dizendo: "Deixe estar mamãe, um dia teremos uma casa, e não será de papelão". E as lágrimas que escorriam pela sua face eram de pura alegria, ante a possibilidade de um dia ser tão feliz quanto aquelas pessoas que viviam dentro daquelas casas secas.
“Pena mamãe não estar aqui, para ver que conseguimos, e foi ela que manteve a mim e meus irmãos vivos, e gratidão é a única palavra que me ocorre neste momento”. Ao despertar de seus devaneios, a assistente social vai seguindo até os moradores da rua para distribuir palavras e comida.

Guerreira Xue

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