Amor - por Inaldo Tenório de Moura Cavalcante

O cigarro aceso agora dizia como foi bom o sexo. Dizia sem dizer, só pelo fato de ser aceso. Era a sobremesa. Mistério desfeito - cada ato sexual é a revelação de um mistério-, ela dormia nua em sua frente, com um fino lençol a cobrir aquele corpo que desvendara belamente alguns mistérios e, pelo desejo que eles despertaram naquela noite, tantos outros seriam revelados. Mas ele não conseguia dormir. Tudo que era tão normal a todos os homens, amando ou não, não era possível ele: dormir depois do sexo. Um tempo que voltava. Voltava sempre, aceso como seu cigarro, e o deixava acordado; como se vigilantes, deserto talvez, tempo limpo, aberto, visão sem paradeiro. Sem sombra. Era a direção do seu olhar. Às vezes, via o cigarro, a fumaça quase perdia no ar - pensava ser como seus pensamentos -, um caminho invisível que ela sabia percorrer. Às vezes voluteava no ar, fazia anel, brincava, até. Ele não ria. Ou via sem expressão, por ver. Porque, também, ela entrava no caminho dos seus olhos, tomava frente quando fazia curva, quando voluteava, quando saía brincando.Outras vezes ele nem via.Ou via, mas sem ver. Tinha uma vezes e outras, diferentes momentos. Como o tempo que umas vezes é veloz e outras vezes para: umas vezes e outras.
Ás vezes ficava olhando para o corpo dela, jovem e belo, curvas sinuosas, pele macia, cheiro bom de fêmea.Corpo suave.Sempre coberto com aquele lençol fino, quase transparente. Um verde-água que parecia molhar seu corpo banha-lo de sonho, de cor de luz. E ele olhava, olhava, olhava... sabia todos os pormenores do corpo, os sinais menores de todas as brechas, cheiros, os recantos todos lapidados já por seus dedos, por suas mãos, por sua boca. Como se fosse ele cego, e tudo aquilo fosse precioso. E era. Preciso. Como um cirurgião e suas mãos... mas ele queria fumar. O prazer depois do prazer: era o que fazia despertar um silencio necessário para sua viagem por seu deserto. Um meio de transporte que trazia o silencio e o conduzia na viagem, a acompanhar os olhos, fazer caminho, ser sua estrada.

O segundo cigarro tinha que ser aceso no primeiro porque ele detestava o barulho do fósforo, ou do isqueiro, ou seja lá o que fosse usado para fazer fogo. Verdadeira aversão ao barulho.

Ela dormia como se o sono fosse o premio. Ela dormia; ele fumava. Abriu a janela e ficou olhando o vento entrando, a brisa a ondular a água molhando seu corpo de um jeito que a fazia se mexer tremer como se ainda na relação, na intimidade do amor, no calor do momento de amar. E a cama a gemer também; os corpos os corpos percorrendo caminhos, se visitando intensamente. A brisa da noite, liberada por coma abertura da janela, despertando pensamentos e trazendo os sons dos corpos, dos desejos, dos chamegos, da cama. Sons que vinham á mente dele sem aviso, entrando de graça, aproveitando a mente dele aberta pela janela.

A brisa entra levemente, como se nãoquerendo acorda-la. Ondula o lençol, ondas ao mar, maresia - até o cheiro vem, esquecendo do cigarro - maneirando, o verde-água nas curvas, como se passasse sobre um quebra-molas. Mas não há barulho. É a brisa. E seus olhos veem sem sentimentos porque só o cigarro interessa, completa o tempo. Seus olhos que não querem ver nem a fumaça do cigarro e ele segura o cinzeiro com a mão esquerda. Depósito automático para o descanso e esfriamento da cinza. Cansada do tempo, da repetição, do ritual das noites de amor. As cinzas cansam até desaparecerem nas costas dos ventos. sementes que não geram nada e sujam os dedos, e móveis, e pulmões... manchando tudo e deixando um rastro de cores frias e odores marcantes. Até o cinza parecer ser feio por sua conta.
O brilho em seus olhos que não dizia que foi bom. foi bom, amor?; não diziam nada porque estavam a fazer a viagem e a estrada não tem fim mas te amo, amor, ele poderia dizer a toda hora e era verdade. Amor. Mesmo sozinha já significava tudo:seu nome , sua beleza, sua vida junto a dele, como se casados desde sempre e ela fosse a única mulher a ativar seus sentidos de homem, fosse sua tradução ou o conceituasse. Amor era como se. Dizia tudo. Não precisa ser explicado.

Mas nada dizia, não tinha palavras.

Ela se mexeu, o frio da brisa a resvalar em seu corpo como uma mão invisível, um cheiro de rosas do campo, um canto indecifrável. Locupletando-se dela como um macho. Não. Era tudo sensível, leveza imensurável, passagens de sensação. Só. Tudo isso: só.

Ela se mexeu e mais nua ficou. Mais nua como se fora possível: como se a nudez não se explicasse, também; silemcio marmóreo na água do tecido que não dizia dele, as palavras se balançavam e nada porque er auma dança. Sua segunda pele que não envolvia, a brisa o cobria com sua invisíveis mãos ou seus beijos manso. A brisa e seus olhos o cobriam. E ela ficava mais bela assim: quase uma não nudez.

Terceiro cigarro.

A fumaça agora sobre seu corpo a maltratava. Ele apagou o cigarro logo que acendeu. Como que por arrependimento.

O tempo que parecia chover abriu. As nuvens passavam no céu sem grandes companhias. A lua banhou seu corpo, traçando um alinha diagonal, parte de seu braço esquerdo, mais próximo da linha verde-água, e indo sair por sobre o joelho direito que estava meio dobrado, como se querendo andar sozinho.

As cores a cobri-la, a vesti-la com uma mansidão não propícia às ideias humanas: tecido verde-água, lua de prata e nudez. Três roupas, várias cores. Sobre o tecido, o prata da lua virava uma cor: sobre a pele, apele mesmo, aquela maciez aveludada, outra; mais a cor da pele a do tecido , a da lua. Um corpo tão mansamente colorido. Mas o azul de seus olhos o branco da luz acesa no abajur. E o cinza da fumaça que não tinha mais cor, mas os pedaços esvoaçantes apareciam entre o prata da lua e sua pele.


E seus olhos. Amor! Podia ele dizer assim com entonação na voz para que ela acordasse e dissesse também amor, ainda ainda acordado, e dissesse apaguei o cigarro , amor, e a palavra se proliferasse pintada, daquelas cores mansas - a palavra amor é uma mansidão só, quase nunca é gritada -, e ficasse ainda mais bela, virasse um acoisa, não mais uma palavras, um corpo, talvez, uma matéria palpável, um silencio que fala.

Amor! Ele não disse.

Sua mão esquerda, sustentando o conzeiro, ainda a fumegar sobre sua mão: a direita nada fazia. Dormia sobre sua perna direita, apenas em repouso, talvez; talvez quisesse se juntar ás cores, à lua, ao tecido e vagar sobre aquele corpo colorido e dizer de sua maciez e expressar o amor que não saia de sua boca. Mas continuava parada sobre a perna como a palavra amor estava em seu coração. Amor e mão em repouso. Se bem que amor não estava exatamente parado em seu coração: estava a viajar nas asas das cores e passar sobre seu corpo, de onda em onda, aproveitando-se dos caminhos da brisa, aproveitando-se dos caminhos dos olhos, aproveitando-se da lua. O amor aproveita-se de tudo para estar sobre um corpo belo., macio, vestido das belezas que só a noite pode oferecer:quando há lua, o tecido é verde-água, fino e transparente, olhos azuis dele...
Suas mãos não se movimentaram, até que ele teve sono e com a mão direita esfregou os olhos e cobriu o bocejo, demorando-se sobre a boca como a esconder a admiração. Depois foi até o cinzeiro e, juntas, ergeram-no: e ele se levantou e saiu do quarto. Só ele saiu. O tempo não lhe acompanhou. Só o mistério foi consigo. Mistério que vive dentro dele e nem ela- com todas as cores, os cheiros, a sensualidades, o verde-água, a lua, o abajur as ondas do marno tecido tão fino que mal cobre, mas desnuda muito mias e deixas eu corpo ainda mias belo -,consegue decifrar. Saíram. Ele o mistério levando o cinzeiro.

As cores ficaram.

O tempo foi guardando tudo. protegendo até.
A brisa ficou mais livre, como se perdendo uma timidez que nunca tivera: só quando nem existia, não tinha entrado, não podia cobrir aquele corpo, fazer dengo em seu sono, deslizar naquelas ondas.


Seu rosto estáva de lado, suas mãos estavam de lado , todo o corpo estava de lado. A água não virou com ela, a lua o cobria quase todo; tudo o que os olhos viam, como a proteger, resguardar. Pudicícia? Menos o rosto que não recebia cor alguma. Nem os olhos dele, que não estavam no quarto. Mas voltou e foi a primeira coisa que fez: cobrir seu rosto com seus olhos. Vesti-lo de transparência, um veludo que traz tranquilidade à mão. O azul de seus olhos pintou o rosto dela. Corpo nu. Tão puro que ele talvez tenha pensado dizer amor, amor, amor. Repetir até cansar e então o amor seja algo palpável, ou ser alguém.Talvez porque as ideias mudam com o tempo e as nuvens taparam o caminho da lua, e ele  desligou o abajur, é não disse amor, amor, amor. Nenhuma vez disse. Preferiu que o silencio sorrisse para ela e o dissesse e que ela quisesse fazer (às vezes é melhor fazer que dizer). Porque diz tudo no ato, não se esconde nada, nem palavras, nem expressões, nem sons, nem gemidos, nem as mãos ficam mais segurando o cinzeiro, nem a outra querendo dormir sobre sua própria coxa. Fazer é melhor do que dizer, às vezes. Todas as vezes é melhor.

Amor.

Um vento cobriu junto com o tecido verde-água, sem lua, sem abajur , sem olhos a vigiar.

Amor cobrindo seus corpos.

Tantos outros mistérios foram revelados no silencio e nos silêncios; nas viagens dos dedos, das mãos , das bocas, dos sentidos, dos segredos. Que voltam aser segredos que precisam ser revelados.

As nuvens cederam, a chuva novamente não veio. Apenas um a brisa era colorida pela prata da lua sobre seus corpos, os braços segurando o verde-água do tecido como se água a banhar os corpos que já eram banhados pela lua, pela brisa e pelo amor.

Sem força algum apara não amarrotar o amor no verde-água no cobertor

Os rostos virados para o lado esquerdo, levemente. Como se não estivessem lá, uma pintura.

Tanto sossego, era amor. Amor que não fora dito.

Lua clareando suas pernas, como um lençol, desnudando-os com sublimidade da cor, a leveza do tecido, a palavra amor, que não se disseram.

Depois, bem mais tarde, ela saiu, deixando-os a dormir enrolados com a palavra amor que não fora dita. 

Conto do livro  Inaldo Tenório de Moura Cavalcante
De onde se pode ver o invisível



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