O GOSTO DOS ANJOS
Quantas vezes fiquei parado a olhar-te junto ao lago, a admirar os teus
movimentos lentos, a invocar a memória e a recordar-me de uma só vez
como te conheci. Eras um anjo de cabelos longos e atados que espalhava o
fogo do seu olhar e se sentava à mesa a falar de papoilas. Sim, os
anjos sentam-se à mesa e repartem o pão e deitam-se na cama e escondem
as armas de fogo nos armários e libertam os pássaros das gaiolas e têm
insónias divinas e orgasmos como orações musicais. E amam aquilo que
somos. E sabem estender-se no chão e esperar que os pisem com amor. E
gostam que lhes acariciem a pele e de ter medo de terem medo e de
revelar o caminho aos que se perdem e de estender uma escada aos que
necessitam de subir e de acender luzes na escuridão e de revelar
estrelas e de iluminar as palavras e de amaciar os espinhos das rosas e
de perguntar o nome aos esquecidos e de apaziguar as certezas
insofismáveis e de transformar a alegria das pequenas realidades numa
coisa imensa e de transformar as horas em oferendas e de colocar
madrepérolas no teu nome e de perder a cabeça por desfolhar malmequeres e
de voar como abelhas e de nadar em grandes espaços. E os anjos gostam
também de nascer todas as manhãs e de percorrer os desertos e de
contemplar as luas a abrir-se e a colocar planetas aos teus pés e de
colher amoras e de se esconder no nosso passado infantil e de dormir
abraçados e de tocar os pequenos pontos azuis do nosso cérebro e de
codificar o nome de deus e de por nome às crias das gatas e das cadelas e
das vacas e das éguas e de serem mais assim e mais assado, conforme os
apetites de cada um, e de fazer tiquetaque como os enormes relógios de
sala e de desvendar aos escritores todos os enredos das vidas que não se
cansam de inventar e de guardar segredo quando lhes pedem e de escrever
romances onde as princesas dormem em berços de vento e de parar o
sangramento quando as mães furam as orelhas às suas filhas e de gravar
orações nos brinquedos e de tomar banho numa bacia junto à lareira e de
encantar lagartos e de fazer milagres ao contrário e de guardar seixos
nos bolsos largos dos seus uniformes e de desfazer promessas tolas e de
decorar poemas e de juntar pedrinhas e pedrinhas e mais pedrinhas num
canteiro de maçãs e de repetir as vogais três vezes e de soletrar todas
as palavas esdrúxulas da bíblia. E os anjos gostam ainda de por vezes
não sentir nada e outras vezes de sentir tudo e de tornar a não sentir
nada e de tornar a sentir tudo e gostam de ser leves como penas de
pintassilgo e tão pesados como chumbo e gostam de perder a consciência
quando amam e quando odeiam, apesar de estarem proibidos de odiar, e
gostam de escrever cartas de amor ainda mais ridículas do que as que
escrevia fernando pessoa e de deixar pousar os pirilampos nos olhos da
luzia e de beijar as feridas que não se veem mas se sentem e de
responderem às perguntas pertinentes do vasco e de nunca se chatearem
com a teimosa teimosia do axel. E os anjos gostam igualmente de falar
com os mudos e de acompanhar a visão mental dos cegos e de dizerem as
palavras mais cruas com uma leve consonância musical e de transformar os
gritos dos desesperados em música erudita e de deixar que chova nos
jardins da babilónia e de obrigar os homens da torre de babel a, pelo
menos, lavarem a loiça do almoço e de assinarem as cartas que enviam por
correio com um beijo escrito e, por fim, gostam infinitamente de
escrever em bicos de pés deixando que os humanos lhes acariciem as asas.
JOÃO MADUREIRA II
http://jmadureira.blogs.sapo.pt/poema-infinito-183-o-gosto-dos-anjos-1019263
IMAGEM NET
http://jmadureira.blogs.sapo.pt/poema-infinito-183-o-gosto-dos-anjos-1019263
Poema lindíssimo onde tão bem retratas a maneira de agir de certas pessoas que fazem parte da nossa vida e por serem tão especiais só as podemos comparar aos Anjos, e no meu caso acredito muito mas mesmo muito na existência dos Anjos da Guarda já que nasci no Seu dia (2 de outubro) bjs amiga do coração
ResponderExcluirUma poesia digna do mais perfeito Céu, com odores, cores, e tudo o mais que compõe as criações mais belas.
ResponderExcluirParabéns!!
E os Anjos agradecem a força e a sensibilidade
ResponderExcluirque tem nas palavras deste Escritor, Sr. João Madureira.
Parabéns por mais um trabalho belíssimo.
Cris