LUZES DE NATAL/ Carlos Eduardo Matos

Fernanda estava em quarentena.
No início, cheia de energia, decidiu aproveitar o isolamento forçado para reler seus muitos livros, escrever poesias, explorar todos os streamings, visitar virtualmente os mais importantes museus do planeta.
No 30º dia, percebeu que não havia realizado projeto algum; uns poucos poemas eram tudo que tinha a apresentar. O tempo parecia arrastar-se, dormia e acordava exausta.
No 60º dia, passou a receber a visita de antigos amores, ouvia as vozes daqueles por quem havia se apaixonado, ou desejado por uma noite, ou dormido por simples tédio. E adorou a companhia, era como se revivesse cada beijo, cada carícia, cada momento de entrega.
No 90º dia, fatigada com todas aquelas presenças masculinas no pequeno apartamento, aquelas memórias que antes faziam seu sangue correr mais forte mas já a incomodavam, decidiu realizar uma espécie de quarup para descartá-las. Teve, porém, de admitir que praticamente não conhecia o ritual indígena do Xingu, sabia apenas que era uma libertação, um adeus para sempre. Lembrou-se então dos Natais de sua infância, quando, logo ao acordar, recebia maravilhada presentes de Papai Noel, entregues junto à árvore. Era isto: faria um Natal fora da época, convocaria cada presença masculina ao pé da árvore cheia de luzes piscando, a abraçaria e lhe diria: “Eis o meu presente. Eu o liberto. Vá em paz”.
Nos dias seguintes começou a organizar o ritual. Não haveria doces, pois não era uma festinha pra crianças, e sim uma cerimônia de adeus, a despedida das lembranças de uma mulher solitária que começava a envelhecer. Somente três elementos eram essenciais: ela, suas memórias – e uma árvore de Natal. Mas não havia árvore, as lojas estavam fechadas, e de todo modo seria ridículo adquirir uma no final de junho.
Certa manhã, ao sair do banho, deparou com sua imagem no espelho e examinou-se com olhos críticos. Viu um corpo já castigado pelo tempo, o corpo de uma mulher vivida, sofrida. De repente seu olhar mudou, tornou-se o de uma jovem de 18 anos incompletos, que se observa e sonha com todos os prazeres que ainda vai descobrir. A mente, porém, continuava a ser de uma mulher madura que envelhecia. Onde a jovem via uma pele sedenta de carícias, Fernanda  identificava as marcas deixadas pelos beijos de incontáveis amantes, todos presentes em sua quarentena; onde a jovem sonhava com uma profusão de orgasmos, ela reconhecia que muitos daqueles que mais a fizeram delirar na cama eram homens maus, que destroçaram sem piedade seu equilíbrio emocional e psíquico.
Fernanda olhou novamente para seu corpo e admitiu que era ainda um instrumento capaz de dar e receber prazer. E mais, era tudo com que ela contava para existir e dar os primeiros passos em sua trajetória rumo à velhice. De repente, surpreendendo a si mesma, falou em voz alta: “Este corpo, que me mantém viva e de pé no mundo, vai ser a minha árvore de Natal”.
Ao entardecer do 95º dia ela banhou-se demoradamente. Depois enxugou-se devagar e untou de óleo a pele nua, até seu corpo brilhar. Em seguida, acendeu velas por toda a sala, amava sua luminosidade difusa; abriu uma caixa onde guardava objetos de festas de crianças, retirou um longo fio com pequenas lâmpadas coloridas e enrolou-o ao seu redor, dando umas quatro voltas. Por fim ligou a extremidade do fio na tomada e observou-se no espelho.
Era uma visão surreal. A luz das velas e o colorido das lâmpadas haviam-na transformado em uma deusa pagã, sedutora e terrível, não em uma árvore de Natal. Permaneceu longos minutos entregue a si mesma, como que em transe, sem convocar seus antigos amantes para o derradeiro adeus. Em seu abandono, não percebeu que dezenas de lâmpadas, que não haviam acendido devido a um curto-circuito, em contato com a sua pele começavam a queimá-la.
Quando afinal, saiu do torpor, Fernanda já estava com queimaduras graves na barriga e nos seios. Assustada e gemendo de dor, arrancou o fio e lançou-o para longe dela. Este derrubou duas velas, cujas chamas começaram a incendiar as cortinas do apartamento.
Os bombeiros conseguiram dominar o incêndio. Sua maior dificuldade foi conter, até a chegada da ambulância, aquela mulher nua e seriamente queimada, que soluçava e repetia sem parar: “Meus pobres amantes, eles nunca mais vão partir!”

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