A PEIXEIRA E O REI



Sabe aquelas histórias de reis e rainhas? Pois as pessoas pensam que por serem ricos e abastados esses eram mais felizes ou especiais. Fora a riqueza e a ostentação mantida pelo povo, os reis são gente igual a todo mundo.
Essa é uma história boba, mas eu gosto de contar.

Os dias eram calmos e passavam sem muito alarido. O rei com suas flores, a rainha com seus amores e o povo, bem o povo com suas queixas e dores.
Esse era um tempo onde a vida seguia seu curso quase que mecânico, quem era pobre seria pobre e seu filho também, e o filho do filho, até o final dos tempos.
Era como se diz hoje "cada um no seu quadrado" e aquele que por acaso não tivesse um de seu, que se virasse como pudesse. O fato é que todos, sem exceção, haviam de cumprir sua sina.
Voltemos ao entediado rei, esse não sabia mais o que inventar, se sentia velho e cansara logo de todas as bajulações, economias e estratégias... E o povo pedindo e pedindo...
Seus pensamentos são interrompidos pelo escravo que chega avisando: — Ela chegou majestade, está na cozinha fazendo a entrega.
Os olhos do rei avivaram-se e num salto dispensou o serviçal e estrategicamente se dirigiu aos jardins dos fundos, próximo a saída da cozinha a esperar para vê-la.
Sempre gostara de mexer nas flores, porém agora isso tinha um sabor diferente, era qualquer coisa suave, gentil e prazerosa.
O jardineiro, logo que avistou a peixeira, passou apressado do quintal para os aposentos reais, depois de uma bela dama lhe fazer da janela o sinal para entrar.
Ansiava sempre tanto por estes momentos, que nem sabia o que era melhor, se esta corrida até ao quarto dela ou tudo o que depois se seguia, o ritual era sempre o mesmo, ela esperava à porta por ele, despia-se, ele ficava esgazeado ao olhar para tanta brancura e quando voltava a si já ela o empurrava para a enorme cama. Era ela quem o despia e num instante se punha em cima dela, como se fossem só um.  Não sabia precisar o tempo que demorava toda a cerimônia, mas que ficava nas nuvens, isso ele ficava! Por ele a vida podia ser só assim, correr do jardim até ao quarto dela, fazer amor, descer á cozinha para comer, ir apanhar um pouco de ar, fazer as necessidades no campo, tomar um banho na água gelada do rio e voltar para ela. Mas não nasceu com sorte e a sua condição obrigava-o a trabalhar no duro! Tê-la ali tão perto e tão apaixonada tinha sido a grande vitória da vida dele!

E por falar em sorte...
Formosa e segura lá seguia a moça, com seu saiote comprido, uma mulher do povo, rodando ao balanço das ancas para encanto do rei.
Um velho ressequido por guerras de bastidores, conspirações falhadas e outros desamores sentia-se entediado há anos, desde que a Rainha "adoeceu" e agora ela aparece, enchendo seus olhos de um brilho que há muito pensava esquecido.
Para os seus 30 anos, não se lhe conhecia marido, nem andava pelas más-línguas do burgo essa enfeitiçava-o... Agradava-lhe particularmente e só pensar já o seu corpo se enchia de vigor.

O que ia no coração da peixeira?
— Olá senhor rei. Disse-lhe com leve sorriso. — Olá senhora peixeira. — Respondeu-lhe o rei no mesmo tom. O rei conhecia a todos no povoado, ou quase todos ...
O primeiro encontro desses dois foi uma confusão engraçadíssima e foi por conta exatamente disso, nunca tela visto antes.
O Monarca em questão tinha costume de se aventurar na jardinagem. Quando estava muito alterado dispensava o jardineiro e ele mesmo, para a tristeza das pobres flores, se ocupava das plantas. É claro que o jardineiro nunca lhe dizia nada, saia desejando um bom dia ao rei, porém pensava vagamente consigo mesmo na trabalheira que teria no dia seguinte para endireitar o estrago todo.
Nesse dia, a moça passava perto da cerca quando escutou aqueles resmungos, olhando em volta e nada. Se abaixa e percebe o homem devastando as plantas como se fosse decepa-las todas, estaca um estante e pergunta:
— Que diabo estas fazendo homem de Deus! Vais destruir os jardins do castelo, estás com raiva do mundo? — Num instante ela tira a tesoura de suas mãos. — Não deves fazer a poda neste ângulo reto, quando chover vai entrar água dentro do talo. Sempre em diagonal, veja. Assim quando cair a chuva, ela escorre e não entra.
O rei que estava com um chapéu encobrindo a cabeça, ali ficou escutando. Nunca ninguém havia lhe dirigido a palavra naquela intimidade. Disse com certa insegurança. — Acho que para jardineiro, eu ficaria bem melhor como rei. — Ela deu uma sonora gargalhada e sem se conter: — Acho que este cargo já está preenchido amigo, porém se perder o de jardineiro podes procurar de peixeiro, que este está sempre em falta de empregados.
Tenha mais cuidado com as plantas, trate-as com carinho. Tenho que ir agora, daqui para dois dias eu volto a trazer peixes para o castelo, se ainda não perderes o emprego até lá, te ensino mais alguma coisa de jardins. — Espere. — Disse-lhe o rei. Mas, a moça corria já em direção a saída, pois tinha outras entregas para fazer, e o rei não conseguiu desfazer o mal-entendido. E ela não o reconhecera.

O segundo encontro, porém, demorou um pouco mais a acontecer. O rei tinha seus compromissos e a peixeira as suas entregas. Toda vez que ela passava pelos jardins olhava em volta. O jardim estava bem bonito e nem sinal do desajeitado jardineiro: “deve ter sido despedido, o coitado”.
Quando se encontraram novamente foi por acidente, ele estava de quatro no meio dos arbustos e a moça vem apressada, e sem o ver, cai-lhe por cima. Aquilo foi uma agitação geral, a rainha estava na janela quando viu o acontecido, imediatamente mandou os serviçais correrem a ver se o rei havia se machucado pois a peixeira caiu-lhe em cima um cesto enorme de peixes.
Todos ficaram alterados nesse dia. A peixeira e o rei estatelados no chão, com os peixes por todo lado. A cena era ridiculamente engraçada. Certificando-se que ninguém se tinha ferido, os dois desataram a rir feitos dois adolescentes. Quando os serviçais os alcançam já estavam compostos. As formalidades cumpridas, foi então que moça soube que o jardineiro atrapalhado era o rei. Desculpou-se cheia mesuras e retirou-se. — Então este é rei. — Pensava ela. — Que desavisada eu sou!

A rainha e seu marido eram bons amigos e casaram-se para satisfazer as convenções. Ambos eram príncipes de regiões diferentes. Quando se conheceram gostaram-se tanto que fizeram um trato, fossem sempre sinceros um com o outro, pelo fato de serem realezas lhes pesava o fardo de um casamento de conveniência econômica, porque a verdade é que o povo, este não ligava a mínima para os sentimentos de seus reis. No começo o jovem que ainda era príncipe ficou aborrecido, quis se negar a tal acordo, pois teriam de ter filhos. — E teremos. — Disse-lhe ela. — Cumpriremos tudo que manda o protocolo. Estavam ambos prometidos desde o nascimento. Se viam só em datas especiais e quando chegasse o momento, marcariam as bodas. Ou era isso, ou achar outra candidata a altura, para o enlace. Qual era o motivo da proposta da jovem? A princesa nutria um especial afeto pelo jardineiro do castelo. Eis aí o impasse.
O príncipe que até então achava que seria um rei feliz com sua futura rainha, começa a compreender que o mundo real que o cercava não era tão colorido como pensava. No seu entender, seus pais eram pessoas felizes no casamento, mesmo arranjado, ou não?
Que fazer agora? Como resolver isso? Pensava que se casando com aquela moça, com o tempo e a convivência iriam gostar um do outro, porém seu coração já estava preenchido por outro. — Ai mundo injusto!
Falou com sua mãe na possibilidade de libertar-se de seu compromisso, sem revelar o motivo verdadeiro para não prejudicar sua amiga. — Por que? — Perguntou a rainha Mãe intrigada. — Se não te agrada a jovem princesa te arrumamos outra, vamos viajar um pouco, tu conheces outras princesas e decides, tens tempo ainda. Seremos discretos para não levantar suspeitas está bem!
Começaram então uma via sacra em segredo, pois não desfizera o compromisso com a moça prometida, pois o jovem príncipe gostara dela. —Tudo podia ser tão mais fácil, que jardineiro sortudo!
Uma das outras moças candidatas era feia, outra uma velha, outra ignorante, outra tagarela...
Quando voltaram a se encontrar, o jovem príncipe e a princesa, marcaram então a bodas. E estabeleceram assim, sua cumplicidade na vida.

Hoje rei e rainha têm dois filhos, um rapaz em idade de casar e uma princesinha prometida ao reino vizinho.
A rainha é cumpridora de seus deveres, amiga do rei e mãe de seus filhos, herdeiros do trono. E sempre protegida e salvaguardada pelo marido, mantem seu jardineiro querido perto de seu quarto e de seu coração.
O rei por sua vez, também protegido pelo cetro e pela sociedade machista mantém seus casos, sejam públicos ou secretos, não importa. O povo perdoa o "deslize".
Os serviçais sabiam que o rei não visitava o quarto da rainha, desde o nascimento de sua filha, há anos, então inventaram que ela era adoentada.
Havia uma passagem secreta que dava para o quarto da esposa, mas, esta era usada por um certo jardineiro.
Agora, tem aqui um rei entrado em anos já, e alguma coisa faz seu coração balançar, o encontro daquela peixeira, o tédio da vida de rei? Vai saber.
Sempre que podia ele dava um jeito de encontrá-la "casualmente", conversavam por poucos minutos. Era bom, e ambos pareciam gostar muito. — Pode um rei virar jardineiro? — Disse a moça a sorrir. E o rei responde: — Pode uma peixeira virar rainha?
— Bem que eu poderia ter sido rainha, sabe. Minha vó o era. Um dia conto-lhe essa história majestade. — E a peixeira contou...
— Minha vó era rainha de um reino distante, um dia ela foi até o alto da montanha para consultar um sábio e misteriosamente desapareceu sem deixar qualquer explicação, e coincidentemente o sábio ermitão também nunca mais foi visto pelo reino.
Ela cansou de ser rainha e ele de ser ermitão, eu acho. Só eu sei o que aconteceu, pois sou neta deles. Tenho as provas de que sou herdeira de uma rainha, te mostro. — A peixeira tinha guardado em seu poder as joias que sua avó lhe deixara. — Não sei dizer direito, mas, não me importo de ser rainha, princesa ou peixeira, é claro que ninguém sabe. Eu gosto dessa liberdade. — Sorrindo, ela continua... — Conheço as ervas do campo, aprendi muito as marés, conheço pessoas, e me sinto bem assim.
Os dias passavam e a cada dia a moça contava um pedaço de sua história. — Minha mãe morreu de parto, por isso cresci com meus avós na floresta.
O meu pai é o melhor pescador destas águas. Quando os meus avós morreram, vim morar para a aldeia com ele, e desde então faço as entregas, por isso sou a peixeira senhor rei.
A rainha não deixou de notar alguma diferença no marido, mencionava seu bom aspecto, o monarca parecia mais jovem até.
Um dia por acaso ela menciona a moça do peixe e o marido lhe confessa abertamente seus sentimentos pela moça, e conta tudo, desde o primeiro encontro. O mais surpreendente era ver o marido, acostumado a ter tudo, se sentir intimidado por uma simples peixeira. — Oh! Mas ela pode ser qualquer coisa, não uma simples peixeira. — Não dormiste com ela inda? — Perguntou perplexa. — Com um aceno o rei confirma que não. Ela olha para ele como se o visse pela primeira vez na vida. — Estás apaixonado homem! Faz quase dois anos que conversa com esta moça. Devem saber muito um do outro. Que espera para pega-la para você? Deixe adivinhar, ela não te quer. — O rei inseguro responde: — Será! — Acaso perguntaste se ela te queria? — Não. — Que confusão nesta tua cabeça querido rei! Precisas pensar no que vai fazer, ou nem pensar e dizer logo tudo o que sentes para ela.
Surpresa com as revelações, não esperava que um dia isso acontecesse, mas, aconteceu. Secretamente se sentia-se culpada por ter seu homem sempre por perto e o marido amigo era um solitário, tinha lá suas amantes, mas nada incomum. O que ela não entendia era o comportamento dele agora, pois ele podia ser qualquer coisa, menos tímido. Vai entender os homens, deve ser medo de ser rejeitado. Ela os via pela janela sempre e sabia que se encontravam no jardim aliás, todos no castelo sabiam. Percebia que ele andava pensativo ultimamente. Pensava ser preocupações com as bodas do filho mais velho.
O rei muda de assunto. — Estou pensando em coroar nosso filho no dia do casamento, que acha? — A rainha arregala os olhos. — Queres passar a coroa já? — Não cansas de ser Rainha? Saiba que ser a Rainha-mãe também tem suas vantagens.
Venho pensado em tirar este "peso" de nossas cabeças, fizemos já a nossa parte querida, e nosso filho vai gostar de ser rei, acredite. Pense, depois conversamos mais sobre isso. E a rainha pensou. Acertaram tudo para a coroação.
No dia do casamento o povo teve um novo Rei e Rainha. E esta não trouxe nada além de sua bagagem, quem sabe se o novo rei tenha sorte de ser amado pela sua Rainha?
O velho rei comunicou que viajaria por algum tempo, buscar novas terras e mais conhecimento. Assim de certeza ninguém estranharia sua ausência.
A Rainha -mãe não poderia estar mais feliz. Desejou ao marido uma boa jornada.
Dizem que depois disso ninguém nunca mais viu o ex-rei. E somente um pai, pescador, sabe o que se passou.
Era noite alta, quando alguém bate na porta do casebre e pergunta pela peixeira.
E um bêbado que ficou a festejar até tarde, andando cambaleante pelas ruas, vê aquele casal cruzando o portais da cidade de mãos dadas. Escuta aquele leve murmúrio.
— Nem sei ainda seu nome Peixeira; — Idalina. E o teu querido rei? — Elias.

Este era um tempo qualquer.
Ninguém é necessariamente para o que nasce. Pode ser somente para o que nasce, pode ser mais, ou pode ser menos.
Cada um é que sabe de si.

#Guerreiraxue



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