A VIAGEM DE TEREZA

Os demais podiam falar ou pensar o que bem entendessem, porém Tereza faria o que lhe dava na cabeça desta vez. Há muito se perdera de seu próprio "eu" e agora procurava na natureza por outras vidas, ou o que talvez, se aproximassem daquilo que ela deveria ter sido, ou vivido. Ainda não voltara a sorrir, mas o seu olhar, no momento, tinha qualquer coisa de inquietação, era como se de repente começasse a perceber o mundo a sua volta, uma expectativa talvez. Parecia maluquice sua, mas sentia uma coisa nova brotando dentro de seu peito. É claro que as lentes de contato, que usava agora, faziam muita diferença na aparência avistada pelo espelho!

A serra da canastra é um lugar místico, com suas cachoeiras de águas cristalinas e imenso espaço verde. A moça acordava com o cantar do galo. Ela que nunca tinha visto tantos pássaros juntos em toda a sua vida, ao abrir a janela era premiada com uma sinfonia ao ar livre, e era extraordinário! Em pleno século vinte um, na era da tecnologia digital, ser despertada por aves que só via em filmes ou fotografias. Passeava por trilhas de mata fechada, também assistia a ordenha de vacas e cabras. O café da manhã era tão farto que mais parecia um banquete. Pães e bolos, frutas frescas, queijos e geleias, e tudo feito ali mesmo. Os cavalos eram maravilhosos, e a gentileza das pessoas eram reconfortantes. Aquilo era um pedaço do paraíso. Tinha televisão, parabólica e internet também, porém nem lembrava que isso existia e só abria seu laptop para descarregar seus filmes e registrar seus pensamentos do dia.

A primeira viagem de sua vida e sozinha!
Desde que se entendia por gente Tereza morava no orfanato e quando teve idade para sair, foi para trabalhar como enfermeira e depois ela praticamente morava no hospital, não era por acaso que agora era a mais jovem enfermeira chefe da ala cirúrgica. Trabalhava feito uma verdadeira "camela".
As férias vieram em boa hora, pois ultimamente andava um bocado triste, sentia certa ausência em sua existência, e essa viagem fora presente de dona Laurinda, uma senhorinha que estava internada fazia uns três meses na ala geriátrica. — Aproveite! — Dizia ela— fique hospedada em minha casa. 
A princípio Tereza ficou em dúvida, depois pensou: — Por que não!

Dona Laurinda organizou tudo para que recebessem a sua enfermeira preferida com toda a presteza possível. A velhinha era mesmo uma "danada", por debaixo daquela aparência frágil havia uma mulher enérgica e determinada, uma empresária de relativo sucesso e mesmo no hospital, ela não largava seu computador portátil ou o celular. Ela havia extirpado um tumor maligno, depois foi uma dificuldade pulmonar e por conta disso praticamente montou um escritório na sua suíte de hospital. A única pessoa que ela escutava era Tereza. Então quando a senhorinha ficava "difícil", os médicos mandavam chama-la imediatamente para que pudessem fazer os devidos procedimentos com a paciente. E a danada ficava dócil feito criança. Todos reclamavam muito da velhinha excêntrica, menos Tereza. Uma recíproca verdadeira que acabou por uni-las num momento delicado da vida da idosa.
Agora Tereza estava em Minas Gerais, numa propriedade rural cercada por tanto verde que chegava a emocionar, e ela parecia mais uma menina descobrindo a liberdade de viver.

Estava uma tarde de sol quente, e ela andando pela trilha perto do rio quando se depara com uma grande árvore, era o convite para desfrutar tamanha sombra fresca. Tereza faz o cavalo parar e desmonta.
O tronco era gigantesco, havia um desenho de dois corações entrelaçados com uma inscrição bem no meio da árvore. 'Aqui encontrei o meu amor'. Um sorriso aflora seus lábios. — Teria sido dona Laurinda?
Estendendo uma manta, e acomodando-se entre as fissuras da árvore ela sussurra: — Isso que é viver. — Sentindo-se como que aninhada nos braços da mãe natureza, adormece.
De repente é sacudida com força. — Acorda moça, que faz aqui dormindo sua louca! Isso é propriedade particular, sabia?
Ela olha sobressaltada para o homem a sua frente, sem entender direito o que se passa.
— Desculpe moço, invadi sua propriedade? Lamento muitíssimo, foi sem intenção, nem vi cercas nem porteiras, pego em meu cavalo e vou embora já. — Por um instante Teresa se sentiu aquela garotinha do orfanato surpreendida numa falta grave, e levando um sermão da diretora. — Que cavalo? Não vejo nenhum por perto. Disse o sujeito olhando em volta, com irritação evidente. — E Teresa mantinha calma aparente. — Ai ai, não é que o bandido me abandonou aqui! Ainda bem que é dia ainda e posso seguir as pegadas do danado, voltando de onde eu vim. — Morta de vergonha, ela se despede dizendo: — Me desculpe novamente. — E se foi.
Chegando de volta na casa, é quase noite, apressa-se em certificar que o cavalo esteja no estábulo, e lá estava o fujão. O capataz aliviado por vê-la sã e salva, diz-lhe que havia mandado alguém no seu encalço quando viu o cavalo chegando de volta sozinho. Já agora falava pelo rádio para que retornasse da busca.
Na hora do jantar tem uma surpresa a sua espera. Maria, a administradora da casa faz as devidas apresentações. — Thiago conheça Tereza, amiga de sua mãe e nossa hospede. — Tereza percebe que agora foi a vez do antipático perder a pose. Com um aceno de cabeça ele a cumprimenta. Ao que ela responde. — Nos conhecemos já Maria, invadi a propriedade dele hoje à tarde.
Sem entender nada a senhora se retira dizendo: — Seja gentil Thiago, por favor. Risos
O rapaz se segura para não rir com ela. — De onde mamãe tirou esta figura? — Pensava — Deve ser outra provável candidata, cruzes! — Sem pensar muito o rapaz dispara — Gosto de comer calado ok.
Tereza solta uma risada.
— Estou com cara de palhaço, por acaso? — Mal conseguindo se segurar, ela retruca:
— Desculpe, achei engraçada a reprimenda de Maria.
— Sei, Maria tem regalias de mãe para comigo e mesmo que eu faça a cara mais feia do mundo, ela me trata como se eu ainda fosse um filhote.
— Nem sabe a sorte que tem moço. Uma mãe já tem seu valor, imagine duas.

Na hora da sobremesa
— Cheguei ontem de noite do Canadá, dormi muito e quando acordei o dia estava tão lindo que fui andar a cavalo. Eu não sabia que havia hospede na casa. Peço que me desculpe a grosseria de hoje à tarde. Senti-me incomodado porque você estava dormindo naquela fissura, na "minha fissura". — Disse o rapaz meio sem graça. — Falei com mamãe mais tarde, ela me explicou que você a ajuda passar por aqueles exames todos no hospital. Fico-lhe grato por ser gentil com ela. Voltei assim que soube que ela não estava bem e agora eu fico no Brasil por seis meses.
— Por favor, não me agradeça e não se sinta obrigado a ser gentil também. Lido com todo tipo de gente todos os dias, e não gosto e nem desgosto, é só o meu trabalho. É verdade que alguns, por vezes me despertam interesse incomum e este é o caso de sua mãe. Porém, houve outros antes dela e com certeza haverá outros depois. Só uma coisa a difere dos demais. Sua mãe parece me querer na vida dela, o que é curioso, pois em geral a maioria dos pacientes quando sai do hospital, prefere o esquecimento. Você não faz ideia do quanto ela insistiu para eu vir passar minhas férias aqui. E graças a insistência dela, tem sido dias gloriosos. E sinceramente, eu não imaginava que o encontraria senhor Thiago, e por acaso Dona Laurinda nem mencionou isso também, em nossa última conversa hoje de manhã.
— Tudo bem. Pretendo ficar por aqui por mais uns dois dias e vou a capital ficar com mamãe. Trate-me por você, faz favor. E você fica até quando?
Ela olha para ele sem jeito
— Minhas férias se encerram em três dias, mas vou amanhã embora. Não quero abusar de sua hospitalidade.
— Olha, por mim podes ficar o quanto quiser. Vou estar ocupado demais para perceber sua presença. Com a ausência de mamãe isso aqui deve estar com tanta coisa para fazer.
Alias... Se quiser, dou-lhe uma carona pois vou pra lá também.
— Se não se importar eu aceito sim, e assim ganho mais um dia neste paraíso. Vou me retirar então... Boa noite. — O Rapaz se levanta — Boa noite e bom descanso.
Quando em seu quarto, Tereza demora a conciliar no sono. Tinha trinta anos agora, mas, se sentia desajeitada e boba perto de Thiago. — Que belo rapaz! — Pensava consigo. Se olhando no espelho, concluía que até que fazia boa figura. Os óculos fundo de garrafa é que destoava um pouco. — Que estou pensando! Melhor ir dormir que ganho mais.
Os dias que se seguiram foram de cordialidade entre os dois. Tereza se sentiu tão contente que ficou com pena das férias terem terminado.
Na segunda-feira chegaram juntos os dois, para a visita de Dona Laurinda.
— Que coisa boa ver juntas as duas pessoas que mais gosto no mundo! — E em meio as risadas, os dois beijaram a senhora com afeto.
— Fico muito grata por me convidar para a sua casa minha amiga! Foi uma estádia fantástica e eu não vou esquecer-me nunca destas férias, mesmo porque, tirei tantas fotos que nem o cachorro perneta escapou. — Mais risadas.

A vida por vezes traça rumos que ninguém imagina onde vai dar.
Em uma semana Dona Laurinda abandonou o hospital, no entanto, praticamente adotou Tereza como se fosse da família.
As folgas de Tereza, que antes praticamente não existiam, agora eram semanais, que ela passava em companhia da amiga em sua propriedade rural.
Thiago estava por perto durante seis meses e quando teve de partir despediu-se agradecendo muito o carinho para com sua mãe, e abraçando-se a ela sussurrou que voltaria logo. Tereza nem sabia explicar, mas quando ele a soltou sentiu um frio. — Que coisa estranha! — Pensou.

Um dia passeando a cavalo com Dona Laurinda, param ambas para descansar na antiga árvore e Tereza pergunta: — Quem escreveu a transcrição na árvore? — Foi o avô de meu marido. — Disse sorrindo. — Ele plantou esta árvore quando comprou a propriedade e alguns anos depois se casou com a filha do antigo dono. Já tinham os filhos quando ele fez esta transcrição. Anos mais tarde sua filha, minha sogra, veio e reforçou a frase, pois se casara com um comprador de bois, que vinha com frequência para escolher as reses no pasto. A família era criadora de gado, sabe. O meu marido fez o mesmo também. — Disse ela emocionada.
— Eu era estudante de agronomia e vim para a esta região fazer um estágio. Só voltei para a capital para pegar meu diploma. E voltei correndo para ele. Risos...
Éramos doidos os dois, o amor nos faz malucos sonhadores. Ainda sonho com ele todas as noites. — Que bonito! Então é por isso que apesar de antiga, é ainda bem preservada as palavras gravadas. Bela tradição de família, sim senhora!
— Sim! — E espero que o aventureiro de meu filho um dia também venha, a reforça-la também. — Ambas ficaram em silencio por alguns momentos.
— Vai sim, com toda a certeza e terá sua casa ainda cheia de netos. —Tomara... Espero muito por este dia.
Tereza aprendeu tanto sobre as pessoas no hospital, porém não entendia a si própria. Agora tinha uma amiga que era franca e aberta, e nunca contara sua história para ninguém, mas abrir-se neste momento era muito complicado. E ainda tinha o Thiago que a perturbava de uma maneira estranha e cada vez que seu nome era mencionado seu coração parecia saltar dentro do peito. Havia uma certa esperança em seu olhar: — coisa mais boba isso! Trocara os grossos óculos por lentes de contato para ficar mais atraente. Perguntava-se com frequência senão devia se recolher a sua própria insignificância, afinal ele não demonstrava mais que uma gentileza para com a enfermeira e amiga de sua mãe. E ela nem ousaria a colocar em palavras, seus desejos.
Neste fim de semana despedira-se de sua amiga e dizendo que trabalharia cobrindo as férias de uma colega por um mês inteiro então, não poderia ir visitá-la por algumas semanas.
Os dias passavam depressa para a enfermeira, pois as rotinas do hospital são por demais absorventes.

Coisa incrível este ir e vir de vidas. Ironicamente pensando, sempre tem alguém nascendo ou morrendo, e o papel de um médico e de seus assistentes é crucial neste momento. Fazer o possível para amenizar dores, sejam estas de uma partida ou uma chegada ao mundo.
Uma noite ao chegar a casa o telefone tocava sem parar. Quando Tereza atendeu era Thiago. Ele ligava com frequência para saber notícias.
— Quando vais ter folga moça?
— Xiii... Isso está longe ainda. — Disse com um sorriso. — Você já está em casa? Que bom! Dona Laurinda está bem?
— Sim sim sim! E você não vem aqui, já tem três semanas. Ela está com saudades, e eu também. — O coração da moça deu um salto. — Vou à próxima semana, prometo!
— Pode ser amanhã? Risos...
— Nãaaaa. No domingo próximo. Que bom que você está de volta, assim sua mãe não trabalha tanto. Tenho achado ela cansada, e sozinha ela acaba abusando da própria resistência.
— Pode deixar que vou cuidar dela direitinho, enquanto sua guardiã estiver fora, mas, o melhor mesmo era você estar aqui pertinho. — E despediram-se...

Toda a noite agora ele ligava. Falavam de trivialidades, de trabalho, de sua mãe, dos cachorros, até da festa do padroeiro que ia acontecer em breve. Por vezes Tereza se perdia em fantasias e dormia assim, embalada por sonhos.
Era sábado de noite e Tereza acabara de sair do banho, pedira uma pizza e enquanto esperava ia arrumar algumas roupas numa maleta, depois ler um pouco...
A campainha toca, e ela corre atender o rapaz da pizza. Ao abrir a porta quem está em sua frente é Thiago. Os dois se olham por momentos sem dizer nada, e atiram-se um nos braços do outro...
Era um casal bastante apaixonado que pegava a estrada em direção a Serra Da Canastra naquele domingo.
Dizer que Dona Laurinda ficou feliz com a novidade, era pouco, ela não cabia em si, de tanta alegria.
Tereza e Thiago casaram-se três meses depois e a cerimônia foi na sombra da árvore antiga, onde se conheceram.

#Guerreiraxue




Comentários

Postagens mais visitadas