O ANONIMO

Cara Escritora,

tomei a liberdade de lhe escrever para cumprimenta-la por suas histórias na internet. Se são totalmente reais eu não sei, o que sinto é que, têm muitas vivencias em seus contos e penso cá comigo que, o demonstra de maneira muito peculiar mesmo.
Não me identifico pessoalmente por achar sem propósito, uma vez que estou escrevendo sem qualquer outro pretexto que não seja o de desabafar. Quem sabe se desenterrar velhos fantasmas, que por vezes ainda sangram dentro de mim, eu consiga esquecer. Se um dia publicares por acaso, será só mais um depoimento de alguém que provavelmente já deixou de existir tem muito tempo.
Eu já vivi tanto, que as vezes até esqueço minha idade, mas só para constar sou de 1945. É verdade que nasci quase ao final da grande guerra, mas de qualquer forma toda guerra é uma guerra e não importa o tamanho quando se está dentro, sem nenhuma chance de escapar. Portanto sou mais um daqueles que por acaso, nasceram nos destroços de uma era...

Era uma carta sem remetente. Não tinha sequer o carimbo de correio
Elza interrompe a leitura e vai até a cozinha interpelar a copeira.
— Jandira foi você que pegou a correspondência hoje?
—Sim senhora, quando cheguei vi a caixa de correio abarrotada, levei tudo para a sua escrivaninha.
Calada Elza se dirige ao banho pois tem seu dia cheio. Queria ler a carta toda, mas agora não ia dar mesmo.
Mais tarde...
Foi uma infância difícil sem pai, e num país assolado pela recessão pós guerra. A minha mãe fazia o que podia para não deixar nos faltar o pão, mas o fato é que muitas vezes dormíamos sem nada para aquecer nossos estômagos, mas fomos sobrevivendo.
Com frequência pensei em fugir, mas nem tinha ideia para onde, pois o mundo estava um caos e era perigoso andar sozinho nas ruas destruídas pelos bombardeios. Haviam muitos mendigos, e estavam por toda parte que se olhasse, e se estes vissem alguém com trocados ou algum pedaço de pão que seja, poderiam matar fácil. A comida era escassa, e consegui-la era uma questão de barganha.
O amor, esse de que todos falam atualmente, cantam e exaltam, não existia, só havia o medo, o terror e uma vontade férrea de se manter vivo.
Uma noite mamãe trouxe uma menina para casa. Ela estava descalça e com a roupa toda ensanguentada, eu achei que estava ferida, mas minha mãe muito rápida carregou-a para os fundos, tirou-lhe aquela sujeira e deu-lhe roupas minhas para vestir. Ela se chamava Cristine, era muito magra e tinha os olhos tão azuis que pareciam vidros, ela não estava ferida e nem me atrevia a perguntar de quem era aquele sangue todo. Naquela noite tive que dividir a pequena ração com ela, mas não me incomodei, ela não falava, e nem me olhava direito nos olhos.

Elza vira a folha e está vazia...
Estranhamente comovida com o conteúdo daquela carta ela vai dormir pensando
"será que vou receber outra?"
Depois de alguns dias, Elza recebe outra carta do anônimo... Certamente alguém vinha e colocava a carta na caixa da correspondência

... E por diversas vezes tivemos meninas e meninos em casa, eles vinham e iam. Só quando fiquei mais velho é que compreendi o que minha mãe e outros faziam, eles traziam aquelas crianças dos lixões espalhados pela cidade, os alimentavam e tratavam suas feridas do corpo e depois os levavam para quem quisesse ou pudesse cuidar. — Eles precisam de uma oportunidade, mesmo que seja mínima. — Ela dizia.
Tínhamos regras de disciplina regimentares e mamãe fazia questão de me lembrar que, qualquer descuido era morte certa.
Não tínhamos endereço fixo e era com certa frequência que acontecia de alguém bater discretamente a porta no meio da noite, e minha mãe arrastar-me para os túneis, com a roupa do corpo mesmo para outro local seguro. Os tuneis eram verdadeiras cidades subterrâneas. — Preste atenção aos sinais meu filho, pois quando eu não mais estiver, você tem que seguir em frente. Eu ficava me fazendo de firme e sério, mas por dentro tremia só de pensar em perde-la...
E um dia eu a perdi...
Éramos um bando de ratos enfiados em bueiros escuros, fedidos e molhados. uma cidade subterrânea sobre escombros de uma civilização que perdeu tudo que a sustentava, e nem posso dizer que a vida corre melhor hoje, porque a impressão que tenho é que ninguém mais se importa com qualquer coisa, desde que não lhe falte nada.

Me pergunto também, se foi por conta da destruição toda que nos cercava, o fato é que apareciam grupos de resgates em qualquer canto, e esses não tinham nome, dinheiro ou família, eram só pessoas fazendo alguma coisa por outras pessoas. E os resgatados em geral, eram destratados, acorrentados, os pequenos eram abusados das formas mais torpes e inimagináveis. Era o ser humano elevado ao status de animal irracional tendo somente a perversão como distração.

Mencionei que não tinham riquezas, mas donativos anônimos chegavam sempre, ora em forma de roupas, de comidas ou armas.

A minha mãe foi morta numa noite de nevasca, quando ela e seus companheiros resgatavam pessoas que estavam presas, propositalmente, em um edifício em chamas. Foi com uma faca atirada ao peito, que ela parou de correr. Demorei muito para chorar a ausência dela, mas quando chorei, nunca mais parei. Foi quando voltei a ver a pequena Cristine em seu enterro. A Cristine como eu, era moça já, e estava muito diferente, mas aqueles olhos ainda eram os mesmos. Me lembro só do meu sentimento de perda, raiva e solidão ... Penso que Cristine também sentiu, pois nunca mais me abandonou a partir daí.

Eu e Cristine não tínhamos ninguém, estávamos órfãos. Então, nos ajudaram a mudar nossos nomes, e atravessar a fronteira , foi quando viemos morar na América.


Queria poder terminar minha narrativa aqui, dizendo que fomos felizes e que tudo de triste e mórbido ficou no esquecimento para sempre desde então, mas a vida real não é bem assim, para alguns pode até ser, porém existem lugares onde tem gente que luta ferozmente só para ver mais um dia de sol.



Até um dia escritora. 
Att., Anônimo

E Elza terminou a leitura em lágrimas.
 

#Guerreiraxue





Comentários

  1. Parabéns explícitos..:-)..nada anônimos...hehehheheeeeee...muito

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    1. Que bom que gostaste Fazendeiro e obrigada pelo carinho meu amigo.:-)

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  2. FINALMENTE PARECE K VOU DEIXAR DE SER "ANÓNIMA" PARA COMENTAR OS CONTOS TÃO BELOS K POR VEZES NOS ESQUECE-MOS K SÃO APENAS HISTÓRIAS; PESAR DE NÃO TER PASSADO POR UMA VIDA DIFICIL, NEM DE GUERRA, SEI AVALIAR O QUANTO DEVE SER HORRÍVEL E TRAUMÁTICA UMA VIDA ASSIM, O K AQUI FOI MUITISSIMO BEM EXPLICADO. PARABÉNS HILDA E RESTANTES COMPANHEIRAS DE ESCRITA, BJS

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    1. Opa...conseguiste finalmente amiga!Queria mostrar um bocadinho daquilo muitos passaram e mesmo que vivam séculos,infelizmente não conseguem apagar da memória.
      Muito obrigada pelo comentário, beijo grande.;-)

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