RETIRANTES

Maria era daquelas mulheres do interior, mas nem sempre foi assim. Se pensar melhor, ela era do interior mesmo, pois tinha nascido numa pequena cidade e como perdeu os pais muito menina, ela e os irmãos acabaram se mudando, e cada um moravam um tempo com algum familiar, depois com outro, com outro. Gente pobre é assim, quando dá fica aqui e quando não, fica ali.  

A mulher sonhava, como todo mundo que se sente só, construir a sua própria família. Então um dia encontrou Zé, que era um rapaz bom e parecia gostar dela, e juntando suas pobrezas casaram-se, e logo vieram os filhos. Apesar de seus 28 anos que para ela já pareciam muitos, tinha ainda planos para si e para os filhos, mas vivia num tempo e lugar que ninguém parecia vê-la, pois sentia-se invisível em relação ao mundo que corria do lado de fora dela. Morava onde não havia energia elétrica, ou água encanada, numa casinha velha e essa tinha tantas frestas que, no inverno, quando tinha ventos raivosos, parecia que se desfaria a qualquer hora do dia ou da noite. Suas companhias eram, além dos dois filhos pequenos, um cão e um radinho de pilhas, presente de um amigo quando foi visita-la certa vez.

Um dia, de tanto ela insistir para mudarem para São Paulo, o marido disse-lhe:

— Então vamos, mas e se não der certo? Maria respondeu de pronto:
— Se não der certo, a gente volta 
— Como a gente volta, se vamos vender o pouco que temos para poder ir? 
— Olha Zé, que garantia mais temos, senão a nossa vontade? — retrucou Maria.

A conversa ia e voltava... Os irmãos dela tinham ido para a capital da mesma maneira e quando voltaram de férias disseram que tinha trabalho e que ambos poderiam viver melhor na capital. Maria sabia que os irmãos ficaram mortificados com a sua condição de pobreza. Todos eles haviam conquistado uma vida digna, e seus filhos estudavam em boas escolas e tinham seguro de saúde.
— Se vocês forem mana, já estamos lá para ampara-los nos primeiros tempos, até que se instalem. Pensa nisso.
Maria tinha que tentar, mas queria que o marido estivesse de acordo, afinal eram uma família.
— Oportunidade Zé, é do que precisamos agora. Se houver trabalho, faremos qualquer coisa. Se nossos filhos tiverem boa escola, e se conseguimos dinheiro para comprar um terreninho, e pode ser até aqui mesmo, para quando aposentarmos virmos viver com alguma tranquilidade.
Maria falava e seus olhos brilhavam, ante ao futuro promissor. Se Zé entendia, ela não sabia, mas tentava explicar bem detalhado.
— Mas já tenho trabalho aqui mulher, e os meninos têm escola também.
— Sim, mas sou eu que não tenho oportunidade Zé! Não tenho perspectiva, não tenho dentes, não tenho valor. Carrego água para que quando tu e teus irmãos cheguem do trabalho e tenham água quente para seus banhos, faço o jantar, cuido de nossos filhos, lavo as roupas, busco e corto a lenha para o fogão.
— Mas o que tem isso? Não trabalhas fora, então é tua obrigação fazer alguma coisa.
— É verdade Zé, só que eu sei fazer mais que isso, e posso ganhar dinheiro e posso ganhar salário também... Te lembras quando viemos viver para cá? Eu não sabia ordenhar uma vaca, tampouco arrancar mandioca, cortar a lenha. Tu me ensinaste, e eu aprendi! O mundo está mudando Zé, e eu quero vida melhor para nós, quero roupas boas, quero poder ir ao cinema com meus filhos. Passear no parque nos fins de semana. Meu sonho era uma universidade e não pude, mas quero que nossos filhos possam.
Zé ficava olhando para aquela estranha. Até tinha uma vaga lembrança que quando namoravam ela comentou que, gostaria de fazer agronomia, mas já vai quase uma década. Quantas vezes ele chegou em casa e a encontrou com os olhos inchados de chorar. Zé via a mulher dele murchar, fazia de conta que não via, mas ele não podia fazer muito, já se fodia todo trabalhando 10 horas por dia.
— Porque tu casaste comigo, se queria fazer faculdade? Tu sofre porque nunca esqueceu esse sonho idiota. — Mas que tem uma coisa a ver com a outra agora?
— Tem que eu sempre fui pobre, e não tive estudo. E como eu poderia te ajudar a ter, se mal ganho para comermos?
— Eu sei Zé, mas jamais pensei em tu fazer tudo sozinho meu bem, e sim fazermos juntos. Tudo bem, se não consegui a minha faculdade dos sonhos então. Porém, eu quero que possamos ajudar nossos filhos a conseguir.
 — Zé não entendia, porque diabos ela queria tanto que os filhos fossem fazer uma coisa que ela queria ter feito. 
Eu vou, mas é por tua causa não esquece, porque não confio nos teus irmãos. E quer saber mais? Pobre não estuda, pobre trabalha para poder ter comida na mesa e chega.  —  Louca de felicidade a mulher abraça o marido. E eu vou por nossa causa, e confiando mais em nós do que em meus irmãos. Pobre estuda sim, e vais ver como nossos filhos estudarão.
E foi assim que Maria veio parar na grande metrópole, e junto veio o marido desconfiado, dois filhos pequenos e uma grande vontade de fazer a vida. 

#Guerreiraxue

                      "Os Despejados" - 1934 (Cândido Portinari)

"A busca pela vida melhor obriga, quase sempre, as pessoas a migrar para outras regiões. Às vezes é a fuga guerra, ou da fome, por melhores condições de salário, de educação, de saúde.
O que se sabe é que segundo um senso divulgado em 2017, o fenômeno da migração já atingia, na época, cerca de 258 milhões de pessoas em todo o mundo.
Em mensagem, António Guterres, secretário geral da ONU disse que é preciso reconhecer as contribuições e os benefícios econômicos, sociais e culturais gerados pela migração".

Fonte: https://tinyurl.com/yxmka929

Comentários

  1. Vc tem retrata a vida de milhões de brasileiros que vieram para São Paulo em busca de uma vida mais dignidade, inclusive da minha família,uns cresceram por serem guerreiros, outros parecerem.

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