Apenas as penas

Ao abrir os olhos ela percebeu que o dia seria de sol. Espreguiçou-se lentamente, juntou suas poucas coisas e saiu do esconderijo. Ao seu redor as pessoas iam e vinham sem sequer notá-la, e ela sentia-se tão bem! Para onde ela ia? Não sabia, mas, sabia que ia, e ia contente. Era maravilhoso estar invisível. Ela cansou de ser espancada e humilhada. Ao relembrar as cenas da noite anterior seus olhos marejaram, o corpo ainda doía, e a alma ainda chorava. Espantou os pensamentos para absorver  melhor o frescor da manhã.

 Nesse momento, a sensação de liberdade era maior que o medo de se aventurar ao mundo lá fora. Sandra era jovem ainda quando conheceu o Carlos. Casaram-se em menos de um ano de namoro e logo tiveram seu primeiro filho. Não era hora para pensar nisso. Precisava de ajuda então sacou o celular e ligou para Elaine, uma antiga colega da faculdade, explicando sua situação. A amiga lamentou muito e disse: — Que pena minha querida, você sempre me pareceu tão feliz. Eu até tinha inveja do teu casamento. Lamento não poder recebe-la em casa, pois estou passando por uma crise conjugal e não tenho a menor condição de dar-lhe sequer um apoio moral. Se você não tiver realmente onde dormir, pode vir para uma noite ou duas. — Tudo bem Elaine, agradeço. Espero que se resolva com tuas dificuldades também.

E agora? Também ligou para outra colega de faculdade, e nada. Foi pensando num e noutro a quem pudesse recorrer até que, se lembrou de um amigo de infância, o Leonardo. Não tinha o seu contato, pois tinha anos que não se falavam, mas, lembrava onde moravam os seus pais. Não custava tentar. E seguiu andando...  Aos olhos de Sandra, havia uma estranheza no mundo e era muito bom perceber.

Nos anos de casada ela trabalhou, criou e educou os filhos. Amava o marido, mas, alguma coisa estava quebrada na cabeça dele e não havia o que se pudesse fazer para melhorar. Tentou convence-lo a se tratar, mas pouco adiantava: — Pensa que sou louco é?

Ao seguir pelas ruas da cidade, ela pensava; será que serei mais uma moradora de rua? O curioso é que  isso não parecia ser o fim do mundo. São tantas as pessoas que não tem um lugar para viver e perambulam pelas cidades, são corpos que ocupam espaço e ao mesmo tempo parecem transparentes e anônimos; "quero ser anônima também."

Ao chegar no endereço do amigo, ela se lembrou da própria infância na casa dos pais, dos amigos da rua, que se reuniam todos os fins de semana, para brincar nas calçadas supervisionados pelos pais que eram também amigos. Na época todos se conheciam, pois trabalhavam na única fábrica de calçados da cidade.

As coisas mudaram bastante desde então. A rua que era residencial antes, agora pipocava comércio por todo lado. 
Ao bater na porta da residência, essa se abre quase que instantaneamente e uma senhora praticamente a empurra para dentro: - Ainda bem que chegastes logo. -Sandra ia abrir a boca, mas, nem teve tempo. - Não aguento mais de tanta dor nas costas.  - E já de bolsa na mão a mulher foi saindo; as recomendações estão na porta da geladeira. Até amanhã! E fazendo sinal para um táxi que parou, a mulher se foi: 'Meu jesus, o que eu faço? Essa louca nem sabe quem eu sou e me deixou entrar." Relutante, Sandra fechou a porta e olhou em volta. Adiante havia uma porta entreaberta uma voz familiar chegou a seus ouvidos: - Pelo amor da santa, venha logo moça, pois estou todo molhado. Ao abrir a porta o cenário é surpreendente. O homem estava numa cama hospitalar com ganchos pendurados no teto suspendendo suas pernas e braços. Ao perceber a situação Sandra pergunta: — Me diz, o que eu faço? — O banheiro é ali e no armário tem roupas. Esta sonda do inferno escapou e estou todo mijado.
Sem esperar muito, Sandra  foi até o banheiro e veio com uma bacia de agua morna e esponja e com muita paciência foi limpando a bagunça.
Enquanto isso a porta bate e chega uma senhora, era a mãe do paciente: Que estrago é esse? 
Sem saber o que dizer, Sandra retruca: Dona Eulália, me ajude a tirar o lençol debaixo dele por favor.
Caladas, as duas terminaram de arrumar os lençóis e uma vez a sonda bem presa, o paciente devidamente limpo, voltou-se a normalidade.
A mãe pergunta: Tudo bem agora? Leonardo assentiu.Então vamos nos acalmar e tomar um chá. E olhando para Sandra disse. Que coincidência você ser cuidadora Sandra! Ela ia abrir a boca e a campainha toca. Um momento, deve ser o entregador com as minha compras.
Logo Eulália retorna ao quarto acompanhada de uma senhora de uniforme.— Essa é Adelaide, a nova  enfermeira do Home Care Leo. 
 — Eu peço desculpas pelo atraso, pois o meu pneu furou e até encontrar sinal para avisar já ninguém me atendia. Ao que Sandra também emendou. — Então foi isso, porque quando cheguei a outra plantonista me confundiu com você. Eu tentei desfazer o mal entendido ela se foi, e a seguir o Leo  estava em apuros, isso foi uma sucessão fatos interessantes. — E ambos se riram
Eulália olha pensativa para o filho: Pois não foi mesmo Léo? Foi sim.
Bem, estando todos salvos podemos agora ir ao chá Sandra. Disse com um sorriso. 
E foram ambas para a cozinha.
 
Continua...
 
 @guerreiraxue
 

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