FILHOS DE NINGUÉM

... E a pobreza, enquanto se apresentar como falta, tem qualquer coisa de cruel e imperdoável.

Hoje recordei-me de um caso, um rapaz que tinha sido miserável durante a infância. Ele chorava muito, pois não tinha ideia de onde viera e sequer lembrava de seus pais, só tinha um velho a quem chamava de avô. Por vezes o menino pensava que devia ter feito alguma coisa muito errada, para merecer andar sozinho pelo mundo, mas, o quê? Ele não sabia. Apanhava dos arruaceiros, se escondia dos drogados, e tinha muito medo da polícia. A sorte era ter os amigos cães que o protegia a noite. De dia fazia pequenos serviços por uma refeição, e quando dava jeito ia até algum restaurante onde o dono lhe pedia para tirar o lixo e em troca recebia algum alimento, e quando não havia nada, era comum ele revirar as lixeiras em busca de comida para si, para o avô e seus dogs.
Quando o avô ficou doente, imaginando que talvez fosse morrer deixando aquele menino a própria sorte, deu-lhe um endereço com uma carta.
— O nome dela é Almerinda, é minha irmã. Se eu morrer não fiques sozinho na rua. — Pois o velho morreu, e o garoto levou a carta. Não havia tempo para chorar agora, porque enfrentar a vida sem o avô era inimaginável.
Almerinda vivia na zona sul, num bairro de classe média, e foi um choque quando aquele mendigo franzino lhe bateu a porta. A carta do irmão era clara;  “Me perdoe pela ausência. Não foi culpa sua, eu que não tinha mais vontade de estar aí sem meus filhos. Aquele acidente foi causado por mim, e só conseguia me lamentar causando infelicidade para minha única irmã. Nem sei se tenho direito, mas queria pedir-te que cuides do Zésito. Ele me chama de avô, então, tecnicamente tu és a tia avó. E se eu não morri antes, foi por causa dele. Com amor, do seu irmão Ricardo”. Com os olhos embargados de lágrimas ela abraça o garoto. — Estás com fome Zésito? —Pergunta. Ela nunca entendera as razões do irmão viver na rua. Ela também perdera, não só os sobrinhos que tanto amava, seu irmão.   Foram tantas as vezes que o procurara pela cidade sem sucesso. — Estou sim! — Então vamos ver se tem alguma coisa para se comer nesta casa. — E a bondosa senhora o adotou, lhe deu um teto, roupas, estudo e afeto. Agora não faltava mais comida e até os cães tinham casinhas.
— Que pena o avô ter morrido — dizia para si.
Devagar, o garoto foi aprendendo o significado da palavra dignidade, porque ela ensinou cuidados com o corpo, com os cães e o mandou para a escola.
Assim o moço José foi crescendo, e por vezes ainda conseguia ensaiar um singelo sorriso em suas feições tão marcadas pela vida nas ruas.
Quando chegou na idade, agora homem feito, foi prestar o serviço militar, pois era obrigatório, e lá levado para uma guerra sem razão, ele não sobreviveu sequer um mês.
Num dia qualquer a senhora recebeu seus pertences em mãos, e junto um telegrama com a notícia de sua morte em batalha e entre suas coisas tinha a bandeira do País e uma pequena carta dirigida a ela. “Querida mãe. Porque me ensinaste tantas coisas boas? Não consigo matar, é mais certo que eu venha a morrer, aqui é muito pior que nas ruas porque, não há onde se esconder, e se eu não voltar quero que saiba que o tempo que passei com a senhora, foi o melhor de tudo. Obrigado. Do filho que nunca te esquece, Zésito."
Almerinda chorou como jamais havia chorado em toda a sua vida. Ficou sem comer e sem dormir, por algum tempo. Fez tratamento psicológico, porém parecia não querer mais viver. As amigas Vera, e Anita faziam o que podiam para ajudá-la a superar a dor daquela perda tão sofrida. Beirando aos 55 anos, o estado emocional a deixava fraca e suscetível às doenças, o que a fazia ser hospitalizada com frequência. Até que... 
Um ano após a morte de Zézito, um acontecimento muda completamente o curso de sua história de vida. 
Alguém bate à porta, e mal se aguentando em pé, Almerinda foi abrir achando ser a faxineira que esquecera das chaves. Quem está na soleira da porta é uma menina miúda, de roupas rotas e olhos arregalados. — Tem alguma coisa para eu fazer senhora? Preciso comer, por favor. — O que a senhora vislumbrava, ali bem na sua frente era o retrato da fome. “meu Deus, que merda de mundo”. Sem qualquer gesto brusco ela abre a porta e dá passagem para a garota. Já dentro de casa, a mulher prepara e coloca um enorme sanduíche e um copo de leite em frente a pequena faminta. Em silêncio, ela se dirige para o quarto e vai dormir.
Quando acorda muito tempo depois, sua amiga Anita está trazendo o jantar. E esta lhe pergunta da garota. — Ela veio pedir o que comer e eu dei. Como é que você sabe dela? — Como sei? Ela lavou a louça, limpou a sua cozinha, varreu o quintal e quando cheguei estava aflita, por voce ter dormido o dia todo. — E se lembrando de Zézito os seus olhos embargaram. 
— Não podes fazer isso amiga, abrir a porta para qualquer um, onde já se viu!
— Eu sei que é perigoso, mas o que é seguro nesta vida, me diga? Vistes ela, é os olhos de um animal faminto, o que me deixa em vantagem sobre qualquer um que seja prisioneiro da fome.

Almerinda ficou pensando. “Ela podia ter ido embora depois de comer, e não foi. Podia ter carregado a casa inteira se assim o desejasse, no entanto ficou ali perto de mim, que estava tão sozinha quanto ela. E o que poderia ela fazer por mim? Nada. Porém, achou-se na obrigação de agradecer a comida oferecida”. 
A realidade é que a garota não tinha para onde ir e não tinha o que fazer, mas não queria ir embora, não agora, e enquanto esperava, foi lavando os pratos da pia. Por vezes ia espiar no quarto para ver se a senhora respirava. Achou uma vassoura atrás da porta e seguiu varrendo...
Almerinda nunca mandou a menina embora, essa que também nunca se foi. As amigas ficaram de "olho", apreensivas pela amiga, pois esta poderia ser alvo de má fé. Mas nada de mau acontecia, muito pelo contrário.
O inusitado é que a senhorinha teve uma melhora de saúde surpreendente. Ambas tinham grande afeição uma pela outra. Janaína era o seu nome, falava pouco, e levou muito tempo para contar sua história, o que era entendido e respeitado, porém, um dado novo traz mudanças irreversíveis outra vez em suas vidas.

Uma noite ouvindo as notícias, enquanto tricotava um suéter, e Janaína que estava em seu quarto entra na sala para pegar um livro ao ver na televisão a foto de um delinquente começa a gritar. Almerinda sem entender, pensando que ela estava com dores, corre a acudir. — Que foi meu bem? Sente-se mal? — Não deixe ele me achar, por favor. — Calma, calma, está tudo bem. Ninguém vai te fazer mal. — Depois de acalentada, a menina começa sua narrativa.
 — Eu morei com aquele homem que apareceu na televisão. Ele me usava de mulher dele e me dava para seus amigos fazerem o mesmo. Fugi várias vezes, mas ele me achava sempre. Dizia que se eu fugisse novamente me mataria desta vez e me fazia dizer a todos que era meu pai, mas imagino que não era mesmo, as famílias se cuidam e ele só ganhava dinheiro comigo. Eu não queria lhe dizer nada disso, me desculpe. É tudo tão feio que a senhora vai sentir nojo de mim agora. Ele dizia que fui encontrada bebê no lixo, e uma das irmã dele me levou pra casa numa noite chuvosa. E isso é tudo que sei do meu nascimento. — Almerinda mal conseguia conter-se de emoção.
— E a tal irmã dele, onde está? — Ela morreu por causa de droga, faz tempo. Se ele me descobrir aqui, terei de voltar para casa, pois é capaz de ameaçar sua vida também.
— Ai minha filha querida! Vai longe o tempo que eu sentia medo de alguma coisa ou de alguém. — Disse a senhora sorrindo de leve.
— Bem, acho que chega de emoções por hoje, vamos dormir, amanhã é outro dia. Vamos resolver isso tudo, prometo.
O homem a quem a menina se referia estava preso, ela não sabia e era por isso que seu rosto estava estampado em rede nacional.
No dia seguinte bem cedinho Almerinda , que já tinha a tutela de Janaína, foi em busca de informações para adota-la definitivamente. Não é fácil vencer a burocracia, mas foi com grande alegria que Janaína se descobriu filha de Almerinda.
 — Esta é sua casa agora, e eu sou sua mãe. — Janaína chorou muito abraçada a sua mãe e quando conseguiu dizer qualquer coisa, murmurou um agradecimento.
Hoje em dia Almerinda é falecida, quando morreu estava com 80 anos e ainda teve tempo de ver a filha crescer e prosperar. 
Janaína era médica e além do trabalho no hospital, atendia aos moradores de rua nas horas vagas. 
Dizem suas amigas que, antes de fechar seus olhos a mãe disse à filha: — Quero que saibas o quanto sou grata por ter você em minha vida. Acho mesmo que tive muita sorte, porque morri uma vez. E foi por tua causa que eu ressuscitei. — Janaína emocionada também. — Eu também tive sorte e duas vidas. — As amigas estavam presentes, e de fato, nunca tinham visto uma pessoa morrer feliz.
Janaína não estava mais sozinha agora, pois eu filho nasceria logo, as amigas de Almerinda eram “tias” que esperavam com alegria a chegada da criança e desejavam sinceramente que ela e o marido fossem muito felizes.
Dessa narrativa só uma coisa é certa, o mundo ficou mais vazio sem a presença de Almerinda.
Era tão bom se todos os filhos de ninguém, encontrassem alguém! 

#Guerreiraxue

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