O DEFENSOR

  Em encontros e partilhas por vezes, involuntariamente é claro, acabamos por estacionar em certas "zonas de conforto", e quando aparece algo fora do contexto a nossa reação mais natural é disfarçarmos discretamente, deitar aquele olhar de condescendência e seguir adiante. O que não se compreende, em geral, é ignorado ou descartado já que não tem qualquer utilidade produtiva.
Geni andava estranha ultimamente e sua amiga Flor percebera logo isso.
Aquilo podia ser qualquer coisa. Um pedinte que bateu a porta, gatinhos jogados na praça, uma história nova naquela caixola, etc etc...Esta senhora era um "poço" de informação.
Flor tinha duas opções, esperar ela falar ou perguntar mesmo. Então...
— Quer ajuda para arrumar a casa amiga? — Geni se sobressalta. —Se estás dispostinha, eu quero sim... — Respondeu-me com um sorriso.
Em silencio começamos as duas, a arrumação ao som de Peter Gabriel que vinha do computador de Geni.
No meio da tarde, pausa para um café. —Vai contar ou vou ter que implorar! Risos..
— Nada não Flor... Pensando somente. — Me diga quando você não pensa? —Fui ao encontro dos escritores semana passada e conheci um senhorzinho interessante. Ando matutando aqui como escrever sobre o assunto. —E...
— E nada, só conhecendo sabe. Ele me fez lembrar a figura de Miguel Cervantes, o Don Quixote.
—Sinto cheiro de história nova...Conte!
— Ainda montando este quebra-cabeça, tento conversar com ele todos os dias, sem parecer invasiva claro, ele é um cavalheiro gentil e educado. Pesquisei seu nome e achei algumas informações.
— O que tem ele demais?
— Não sei, mas vou descobrindo, devagar. Mudemos de assunto por favor. Como vai as aulas?
—Na medida do possível vai bem. Aquelas crianças são um praguedo, mas me viro bem por enquanto. 
Ambas rimos.
—Sei que os adora. Só não sei onde acha tanta paciência ganhando pouco.
— Meu problema maior ultimamente está na convivência com este novo acordo ortográfico.
— Muitas mudanças na escrita? —Sinceramente amiga, isso é uma palhaçada, ficamos perdidas em sala e mesmo quem não discorda não sabe aplicar.
Se a ideia era "unificar o idioma para prestígio internacional", acho que alguém se equivocou, por que virou uma grande confusão. É claro que há interesses nem tão puros e desinteressados assim nesta mudança.
Os professores estão confusos.
— Explique por favor! —Disse Geni curiosa.
Bem, o que eu entendi é que o mercado Lusófono é grande e que o idioma unificado vai permitir mais espaço literário ao Brasil. — Por que só ao Brasil?
Primeiro pelas mudanças aqui não terem sido extremas, segundo por que ganhamos mais o mercado Lusófono africano.
—Mas se unificarem a língua portuguesa a UNESCO vai reconhece-la como idioma oficial, não? Segundo soube só não é oficial por haver duas ortografias. E depois a proposta partiu foi da Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa. Não pensam que só o Brasil obterá vantagens, pois não!
— Sorrindo Flor argumenta.— Sim amiga, mas quem "cantou" esta proposta foi o Brasil em 1986 e na época só Timor Leste ficou de fora por ainda não ser independente. O acordo da época pretendia unificar 99,5% do vocabulário. Portugal não concordou, claro. No acordo atual a unificação ficou em 98% devido a concessões de Portugal, todos os países assinaram o dito em 1990 porém, precisam ainda ratificar.
—Não ratificaram todos ainda? Me desculpe perguntar amiga, nunca liguei para esta conversa, pois para mim esta discussão era bobagem, coisa de burocratas que não tem que fazer e querem fazer jús aos salários que ganham.
—Parece que ainda falta Angola ratificar. E saiba que se não for ratificado por todos os envolvidos, a mudança ainda não será oficial. — tu não és professora Geni, não vai te afetar muito a escrita e depois, sempre tens teus corretores ortográficos de plantão. Sabe que existem várias universidades internacionais ensinam o português falado no Brasil?
Não sei dizer se os portugueses concordam. Existem as correntes contrárias, com certeza e acredito que estejam divididos. Penso que unificar o idioma não significava abandonar de vez seus dialetos regionais. Gosto de nossa língua como ela é. Temos um idioma formal claro, e temos o que se fala pelas ruas, guetos e periferias deste país enorme que é o nosso.
O que se compreende é que mais o português de Portugal vai ficando parecido com o português do Brasil e assim vai perdendo suas antigas influencias.
Para que entendas melhor isso eu dou-te exemplo.
A cada batalha vencida por Portugal, o povo que era escravizado era imposto o latim vulgar, língua falada antes, pela população. Isso trouxe-lhes misturas e influencias de línguas bárbaras e árabes. "Isso" se chama substrato linguístico. No caso do Brasil não ouve esta imposição pois quando aqui chegaram, os portugueses encontraram índios com sua própria linguagem. Mais tarde é que começou a troca de elementos linguístico com a chegada dos negros e o contato com moradores de fronteiras.
Como você vê, a cada mudança imposta no idioma vamos perdendo história e os antigos vão se juntar ao latim, mortinhos da silva. Eu como professora tento me atualizar o máximo que posso, mas tenho a impressão que os governos não se importam de ter mestres mal formados pois o sistema educacional está longe de ser eficiente. Ano passado tive um aluno na turma da quarta série que não lia, sabe. Fiquei muito irritada porque as minhas colegas que já conheciam o garoto o "empurraram" para mim com a seguinte observação; —Se você não conseguir ensina-lo a ler, ninguém consegue.
— E ele aprendeu? — Sim, mas esta política de que aluno não pode ser reprovado é no mínimo um desrespeito para com o indivíduo.
Geni mirava a amiga com respeito e admiração. — Admiro a tua capacidade de conseguir resultados Flor...
— Já sei! O título será "O defensor".
— Que!!!
— O título do novo conto mulher! E será sobre as pessoas que cuidam para preservar, a história do idioma. o Linguista não seria muito apropriado, suponho eu.
Flor não se aguentava de rir.
— E eu que pensando que você tinha arrumado um chamego e tu só pensando em títulos!
Assim é minha avoada amiga Geni...E as risadas continuaram pelo resto da tarde.

#Guerreiraxue


Desde 1 de janeiro de 2016, as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AOLP) finalmente são obrigatórias no Brasil. Apesar do acordo ter sido assinado em 1990 com outros Estados-Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) para padronizar as regras ortográficas, foi ratificado pelo Brasil em 2008 e implementado sem obrigatoriedade em 2009.

Em 2013, depois de 23 anos da assinatura e de 5 anos da ratificação, professores, escritores e filólogos contrários ao Acordo criaram polêmicas e discussões, o que levou o Governo brasileiro a adiar a oficialização do uso das novas regras ortográficas para 2016.

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