EU TENHO UM SONHO...

Este conto foi escolhido o vencedor concurso da editora Papel DArroz
Enquanto o vizinho tocava violino, adormeci a um canto da cama apenas com o vazio do meu corpo e logo comecei a sonhar. Nem sempre o faço necessariamente por esta ordem, permanecendo acordado e gemendo num esforço de lucidez, mas desta vez assim aconteceu. Na verdade, a meio da oração sob a lua amada, fechei os olhos calmamente e confiei a minha vida a um sonho que me invadiu até o corpo afrouxar.
Nos primeiros instantes, vagueei sobre as pedras das calçadas que se acendiam e pareciam ter vida por dentro, como se isso me assegurasse a própria vida. Começava na realidade a sonhar, como se preenchesse o vazio das fotografias nas molduras ou o silêncio dentro doutros silêncios. Depois, como vagas sem regresso ou overdoses de palavras sem imortalidade, imaginei cenas de futuros longínquos e pedaços de noites minuciosas para, de seguida e quase de imediato, ver o arco-íris fugindo do outro lado do mar enquanto o ar ia ficando impregnado de iodo. Tudo lembrava a catástrofe lenta da minha vida numa noite envolta de serenidade, onde a brancura da lua chorosa se projectava quarto adentro, tentando atenuar o pesadelo deste sonho estranho.
Com o corpo estendido em total repouso e velado, sem aspirar à glória ou à tristeza, como se desejasse penitenciar-me com absoluta convicção, de novo voltei a sonhar com a minha mulher. Todas as noites, sem excepção, assim acontecia. Deitado numa inércia quase eterna, entristecido com a nítida certeza de não a ver a meu lado como outrora acontecia, sonhei no quanto rasgava os céus apenas para poder ver o seu rosto sorrir de novo e as estrelas no seu destino colherem o meu amor por ela. Toda a santa noite, numa luta entre o razoável e o que não é razoável, quer o razoável fosse a vida ou fosse a morte, consegui ver nitidamente o seu corpo flutuar ora fogoso ora com frio e eu sem saber como aquecê-la, imobilizando-me debaixo do meu corpo como se assobiasse na respiração de um poema.
Bem quietinho e sem qualquer gesto, como as palavras que o poeta escreve à queima-roupa e no fim nada possui, recordei os nossos mudos olhares e apertos de mão reconhecíveis em qualquer parte do mundo, enquanto contemplávamos o horizonte e sentíamos o crepúsculo flutuando sobre os regatos tardios, tal como acontecera antes do seu último fôlego de vida. Desde a tarde em que ela partiu deste mundo, tudo por causa daquele ridículo acidente, que apenas a sua fotografia a cores transforma a minha vida fúnebre em eco caminhando sem rumo traçado nos confins da minha memória. Sim, sei que um dia me disse para não ter medo de vaguear sozinho nesta vida se algo lhe acontecesse repentinamente, como se já o adivinhasse. Mas, acordado ou a sonhar, nada mais me consola nestas noites de pedra onde nem as estrelas pernoitam e a lua caminha quase sem vislumbre.Tento apenas não deixar escapar as saudades que a sua ausência provoca, procurando nos sonhos o seu respirar por entre o sol frio e a cidade ainda meio adormecida, tentando adivinhar e esperá-la definitivamente só a meu lado.
Claro que é apenas mais um sonho tacteando o meu corpo em surdina, na lentíssima hora da madrugada em que, a um canto da cama, me questiono uma vez mais onde começará o meu rosto? Ainda a amo e de noite a noite me afundo na minha dor. Serei um emigrado dentro dum mundo que nem na minha dor possa encontrar-me? Que nome se pode dar à tristeza de um domingo de missa sem ela a meu lado? O certo é que não me lembro se choro quando as noites caiem sobre os meus olhos ou a brisa caminha pelo quarto onde nos despimos tantas vezes e fizemos amor como um enorme teorema geométrico. Apenas sei, mesmo sonhando, que cada beijo seu é, ainda hoje, uma meditação, um tropel alucinado de sentimentos, como se eu fosse o grande manicómio deste planeta.
Bem no fim da noite, apenas me mexendo ligeiramente como se verificasse as algibeiras há muito desabitadas de moedas, sonhei estar sentado no lugar mais sagrado ao fundo do jardim da casa, no cimo da árvore, pois ela sempre me dizia que Deus aí se esconde. Não há fumo sem fogo. Qualquer chavão utilizado daria na mesma, como se acreditar nisso me permitisse conseguir transformar o azul das hortências em cor de resina. Sim, a solidão é mais do que cinzenta e eu tenho um sonho, acordado ou a dormir nesse lugar imaculado: o de olhar um dia o seu rosto uma vez mais e deixar a emoção tomar conta dos nossos corpos sem sabermos para onde fugirmos, estar consigo num mundo glorioso e com futuro talvez porque, não receio em dizê-lo, não tivemos oportunidade de caminhar juntos de degrau em degrau por longos e bonitos anos.
Acordei finalmente quando o dia nascia e as estrelas já dormiam algures. Senti o perfume dos peixes abandonados no útero da praia e fiquei a ver a luz através da janela. A chuva veio depois, ao mesmo tempo que as aves voavam como hábeis golfinhos para respirarem a flor da manhã. Levantei-me sem cismar nos sonhos das aves que só a elas pertence, e senti então que tenho o sonho de poder caminhar sem perder a memória da minha mulher.

Podem chamar-me de doido, mas eu tenho um sonho... A vida sem quem amo é toda feita desta imensidão que é o vazio. A saudade deixa-me endoidecido e dono da incoerência entre o espírito e o corpo. Por isso, agora bem acordado e de barba escanhoada, não deixo de ter esse sonho, o de abrir os braços para longe até vestir um rio com palavras doces, seduzindo o tempo a olhar para a água e folhear as horas murmuradas ao lado da minha mulher. O sonho de poder passear nas nuvens e nas estrelas por onde sei que ela agora caminha à minha espera. Apenas terei de aceitar o relógio da vida e a ausência dela e, quiçá, guardar numa caixa todas as nossas lembranças até me esquecer desta minha triste saudade e ela deixar de me aparecer em sonhos para, finalmente, poder um dia abraçá-la verdadeiramente e adormecermos preguiçosamente no reflexo das águas do céu. Sim, eu tenho um sonho…
João Paulo Bernardino
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