A ESPOSA PERFEITA

Do beijo extrai-se o amor de sempre. Ele parte, fardado igual ao primeiro encontro. Ela exala a mesma mágica adolescente. Nisso vão-se doze anos. O dia dela segue cheio de sol até, entre os seus afazeres domésticos, receber um telefonema que distorce uma história perfeita. Completamente desnorteada, Ana segue ao hospital. Daí em diante trava-se uma luta entre o seu amor e a própria carne, traiçoeira desde que o homem se entende por queda. O mesmo traço adâmico, difuso na doce alma, porque Ana não tem mais o homem que a abraçava com força e dispensava-lhe todo o prazer do mundo; não mais a cama quente quando precisa, a partir daquele maldito telefonema, tudo o que lhe resta de companheiro habita numa prisão de leito, às vezes cadeira de rodas; todos os cuidados exigem muito da esposa concentrada, em tom quase sobre-humano. Ela fica pelo sentimento ainda íntegro, firme no propósito de amar, todavia o corpo peça os afagos ardentes que se tornaramimpossíveis de ajuste com a sua mente monogâmica.
   Uma tarde comum. Ana chega, como de hábito nos dois anos da paraplegia do esposo, móvel só do pescoço pra cima. Cumprimenta a enfermeira e alguns amigos que se revezam, quase diariamente, imbuídos do propósito de trazer algum alento ao sargento acamado; inerte por causa de um disparo certeiro na defesa dos seus deveres. As horas correm silenciosas; Ana costuma falar bastante ao fim dos seus cuidados domésticos e preocupações com as contas, compras e etc. Senta-se, quase religiosamente, à borda da cama equipada e papeia nos restos de tarde com o seu Filipe inerte – todo santo dia, desde o maldito telefonema. Ana atua como se o seu relacionamento fosse uma normalidade unânime. O marido reluta, mas acaba cedendo o seu sorriso cansado, mas verdadeiro, toda vez; resignado ele espera os finais de tarde a sós com Ana para desatar um universo de pesos e privações, encalacrado no por que prosseguir, até o desabrochar do amor pela simples presença. Ana sente-se realizada toda vez; saber a sua importância no suporte de tamanha dor lhe faz concreta na sua missão abnegada, embora carregue as suas íntimas lacunas. Mas nessa tarde Ana não conversa; nada de piadas sobre futebol ou política que o seu Felipe tanto gosta de comentar; nada do seu sorriso luminoso que bate recíproco em seu amado; ela chega como se em outra estação. Dá um “oi!” pesado e, com jeitinho, dispensa os presentes. Filipe fica no seu quarto isolado; temeroso; ciente da sua incapacidade de acarinhar uma mulher ainda tão viva e bonita. Sabe que a qualquer hora chegará outro homem completo para Ana, todavia ele prefere viver com a dúvida do seu abandono a garantir para si uma certeza tão desgraçada: sem ela não há razão para novos dias.
   Na penumbra da quase noite, de um lado a outro da sala, Ana espreme-se entre a necessidade de expor toda a verdade ou, bem possivelmente, agigantar mais o tormento do seu amor. Ao fim de choros doloridos, pensamentos românticos e trágicos, preces quebrantadas; ela se decide. Parte à alcova prisioneira de Filipe, certa do poder redentor que há na honestidade.
   Um curto colóquio sussurrado. O penitente mudo recebe a notícia; sua resposta vem por um encher lento dos olhos que, como suas poças desavisadas, transbordam lágrimas em forma de filetes até desaguarem nos frustrados ouvidos. A respiração do pobre homem, ainda jovem, lança ao cômodo todo o peso da sua condenação pela orquestra ascendente dos sentimentos misturados, até a explosão de inúmeros berros rasgados e declarações amaldiçoadas. Ana limita-se a sair, deixar a poeira baixar. Assim seguem as coisas até o aprendizado; como um livro empoeirado, parido da antiga estante, poderia ser tão benéfico? Hoje está de volta a cumplicidade; Filipe aceita e ama Ana, talvez mais do que antes; ela carrega o seu: “Só por hoje!” cheia de calos, mas com muito louvor ao âmago. Além do retorno das conversas e risadas, agora há carícias, leituras e preces casadas: que todo dia prorrogam o milagre dos novos filhos.
 Elicio Santos

   



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