A vida do João - por Leandro Campos Alves

  “Tudo deu início em meados do ano de mil novecentos e setenta e um, num pequeno vilarejo onde composta de poucas ruas ainda de terra batida, mas que os moradores se cumprimentavam respeitosamente como compadres.
Neste período como se a magia do amor tomasse conta do local, doze mulheres ficaram grávidas, algumas eram marinheiras de primeira viagem, outras senhoras já encerravam sua criação, vindo os caçulas, conhecidos também carinhosamente por rapa do tacho.
Também tinham aquelas senhoras que não estavam nem pensando em continuar aumentando sua prole, ou se encerrariam por ali, mas fato é que neste período, uma rua em especial ficou conhecida como rua das grávidas, pois das doze gestantes, sete delas moravam naquela mesma rua, vizinhas de sonhos e moradas.
Entre enxovais e preparações para a chegada da criançada, o ano de mil novecentos e setenta e dois chegou, e com ele os primeiros partos. A cada parto uma surpresa.
O sexo da criança parecia que também foi combinado pelo acaso da brincadeira do destino, ou por obra divina. As crianças nasciam todas meninas.
Mas eis que no meio de todas gestantes uma criança em especial parecia ter quebrado a regra daquele possível acordo celestial, e nasceu o Bendito fruto entre as mulheres, exatamente o menino que ficaria conhecido por João.
Mas seu nascimento parecia mais um jogo de cabo de guerra entre a vida e a morte, o parto que começou ao cair da tarde de uma sexta feira, só terminou no anoitecer do domingo, mesmo assim porque o médico vendo que perderia a paciente para a morte se não escolhesse salvar a vida da mãe e deixar o destino da vida do menino nas mãos de Deus, nenhum dos dois sobreviveria.
Decisão tomada o médico começou o procedimento de retirada do menino com fórceps, logo o médico viu que só um milagre salvaria a criança, pois o menino já estava completamente roxo.
Preocupado com a gestante, o médico retirou o menino do ventre materno, e em momento algum o menino chorou demonstrando estar vivo. O médico passou a criança aos cuidados da enfermeira.
O que o médico não esperava e que João era teimoso, e bota teimoso nisso!
Diante de todas complicações do parto o menino deu o primeiro murmúrio na sala ao lado, ainda nos braços da enfermeira. Ele sorrateiramente começou a recuperar a cor e a vida surpreendendo a todos os envolvidos.
Porém mesmo diante de sua teimosia a morte ainda o rondava, demonstrando sua fome pela seiva da vida.
A cor que antes era roxa, em poucas horas se transforma em um amarelão que tomava conta do pequeno corpo franzino da criança.
O médico não teve dúvidas em diagnosticar o menino e encaminha-lo para outra cidade urgentemente para uma transfusão total de sangue. Esta era a única chance da sua sobrevivência.
Enquanto os exames eram feitos e a vaga arrumada em outro hospital, eis que Deus manda seus anjos ao encontro da criança, e pelas mãos deste anjo descobriu-se que a criança estava com icterícia.
João naquele dia já se demonstrava teimoso como só, driblando a morte duas vezes.
Os anos estavam se passando e as crianças da rua das grávidas já faziam algazarra pelas ruas, eram tombos e gritarias, mas todas cheias de alegrias. Porém só se ouvia voz de meninas, João poucas vezes estava entre elas, não por questão do sexo masculino, mas pelo presente que o destino novamente deixou na vida daquela criança.
Já aos quatro anos ele ainda não andava direito, e poucas palavras murmurava, eram poucas pessoas que o compreendia, entre elas, sua mãe, seu irmão e uma vizinha que carinhosamente estava sempre por perto.
Para terem ideias de como falar com João era difícil, um dia seu irmão está brincando com ele, quanto João começou a balbuciar para seu irmão agu, agu, como se pedisse algo...
Entretanto seu irmão não estava compreendendo o pedido de João, na medida em que o jovem irmão tentava decifrar o que João queria, João por sua vez, começava a tossir desesperadamente e a enfiar-se por debaixo da mesa.  Neste momento de desespero das duas crianças a jovem mãe ouviu a bagunça e foi supervisionar o que estava acontecendo, e mais um vocabulário foi descoberto pela família, pois mãe e filho descobriram que João queria apenas beber água.
A idade do menino foi passando e eta João teimoso!
Novamente ele surpreendeu com seu desenvolvimento, como por milagre, seus passos já eram fortes, que o fez unir-se aos amiguinhos da rua, suas palavras já eram compreendidas por todos, porém com a troca de muitos fonemas.
Aleia, malia, tleis, era parte de um dialeto todo especial e único de João.
A alegria na rua das grávidas, não era mais movida pelo fenômeno da gravidez coletiva, mas pelos gritos, sorrisos e jogos de bola e pique esconde, tudo sobre os olhares atentos das mães. E aquela rua que anteriormente era a rua das grávidas, passou a ser conhecida na pequena cidade como rua das crianças. Pois em todas as tardes o número de sete crianças aumentava magicamente com a chegada dos amigos vizinhos.
Na mesma velocidade do tempo e da vida, as crianças iam crescendo e a hora da matrícula escolar estava chegando.
Naquele ano uma a uma das crianças foram matriculadas. E chegou o tão esperado momento de matricular João. O menino todo faceiro quis acompanhar sua mãe a escola para conhecer o local que todos falavam na rua que iam estudar.
Com o olhar brilhando o menino entrou junto com a sua mãe numa sala especifica do colégio para matricula, mas assim que sua mãe anunciou que estava querendo matricular o filho, as secretárias do colégio os encaminhou para a sala da diretora.
João sem saber de nada era todo empolgação.
Entretanto aquele olhar de alegria logo sairia de sua face, pois ao começarem a conversa entre a mãe do menino e a diretora do colégio que estavam a esperando na sala, João foi surpreendido ao ouvir que ele não era normal, pois a diretora querendo proteger o desenvolvimento dos outros meninos, negou firmemente a sua matricula, alegando que ele só poderia estudar numa escola para alunos especiais. Não que isso seria um problema para João, a questão maior era na cidade não tinha esta instituição de ensino, e mesmo que tivesse ele seria separado de seus amigos.
Neste momento João já escondido atrás das pernas de sua mãe, era nítido que ele não queria mais ficar naquele lugar, pois o menino foi tomado por um pavor que era claro em seu olhar. Ao presenciar o diálogo naquela sala uma das professoras do colégio se pôs a ajudar a mãe do João, e afirmou que João seria seu aluno e que nada atrapalharia o desenvolvimento dos demais.
Depois de muito dialogo e um teste com psicólogos, o menino já estava frequentando a sala de aula e começando a se alfabetizar. Dura missão, porque os sons das palavras não tinham distinção para João.
Mas eta menino teimoso, e por que não falar, tinhoso.
Mesmo com a dificuldade de distinguir os sons e fonemas, o menino foi descobrindo alguns truques para escrever e decorar as palavras, e assim começou sua alfabetização.
A idade passava e João entrava na adolescência, época de descobertas, amores possíveis e impossíveis, e sonhos, muitos sonhos.
Naquela época não existia o tal computador, telefone era para poucos, se alguém comentasse que um dia inventariam o tal celular, um aparelho que para falar não era preciso estar conectado a fios, com certeza esta pessoa seria motivo de chacotas.
                Era o mundo de João, e suas primeiras desilusões amorosas logo aconteceriam, não por sua afeição ou pela falta de romantismo, mas pelo presente que o destino lhe deu. Nos namoros da época de João, os jovens se comunicavam através de cartas com papeis coloridos, simples, de almaço ou de folhas de cadernos, também poderiam ser aqueles que tinham impressos neles carinhosos ursinhos e outros desenhos, algumas cartas eram embebidas no perfume da amada.
Mas logo na primeira carta que o menino escreveu para a sua escolhida, a espreita atrás de um poste de luz ele ouviu os risos e gargalhadas, ali ele acabava de descobrir que o amor unilateral não era suficiente para encobrir seus erros ortográficos.
João se impôs em atitude e decidiu que amores em sua vida, só aquele palpáveis cara a cara, e mesmo amando alguma menina, se por aventura surgisse a palavra escrever uma carta, ali mesmo o relacionamento acabaria.
O menino era mesmo teimoso.
Diante de todos obstáculos que surgia, ele dava seu jeito e inventava uma artimanha para enganar suas falhas.
João estava cursando a quinta série, quanto sentiu a sua primeira dor da derrota estudantil, pois naquele ano a professora que lecionava Língua Portuguesa, deixou o menino de recuperação por meio ponto, e mesmo dedicando-se aos estudos para não repetir o ano, o menino recebeu a notícia que após as provas finas da recuperação, ele estava reprovado por dois décimos de ponto.
Dois Décimos!
Um dia João ouviu de um respeitável senhor que ele deveria viver entre os índios, pois se nem falar direito sabia, quem diria escrever então, e pessoas assim nunca dariam nada na vida.
Na mesma velocidade da vida o tempo fecha as feridas, mas não apaga as marcas deixadas por ela.
O tempo é a marca dos homens, e João sempre descobria meios para driblar sua deficiência.
Para que as pessoas não descobrissem seu dialeto único, ele descobriu que ao falar depressa as pessoas não prestariam atenção nas pronuncias das letras, e sim, prestariam atenção no que ele estava falando, para não perderem o teor da conversa.
O menino homem feito casou e construí família, e por um acaso do destino o improvável aconteceria na vida dele novamente, derrubando a profecia daquele senhor.
João descobriu por acaso o amor e o prazer pelas letras e por contar histórias, um acaso que iniciou na encomenda de um livro.
Na mesma época que as tecnologias iam crescendo e surgindo, celulares eram tipo tijolão, computadores eram para poucas pessoas, e notebooks, quem diria? Quando os primeiros surgiram eram sonhos de consumo.
Diante de tantas inovações, a inclusão digital veio como outro presente na vida do João.
Com a imensa vontade de escrever sua história, ele começou a redigir seu primeiro trabalho apenas para guardar de recordação algumas poucas linhas. Porém as linhas se tornaram páginas e logo as páginas capítulos e em uma semana o que era apenas para ser uma recordação pessoal, se transformou no primeiro volume de uma história a ser revelada.
Mas mesmo assim ele guardou seus textos e escreveu outros, foi quanto pela consistência do destino novamente as portas da vida se abriram para o teimoso. Ao revelar seus primeiros livros impressos em papel A4 a alguns amigos, João foi surpreendido ao ouvir o conselho que ele deveria publicar os livros, mesmo contendo erros ortográficos.
Para um jovem que quase não nasceu, que quase não andou e falou, que por pouco não tinha estudado, o que era publicar com erros?
Só que para João era algo a mais, era quebrar a barreira do impossível.
Com apoio da família e de sua esposa, ele começou a pensar na possibilidade da publicação dos livros, e neste período ele já tinha conhecimento de uma editora virtual que publicava por demanda, porém não conhecia se realmente era eficaz e séria. Foi quando na mesma cidade ele descobriu que um jovem rapaz e muito promissor, filho de um grande amigo seu havia lançado um livro por esta mesma editora que há mais de um ano João estava conhecendo.
Naquele momento com a publicação do livro de seu amigo, João conheceu a fundo o projeto virtual sobre demanda, e dali para lançar o primeiro romance era questão de tempo.
Mas o tempo urge já dizia os antigos, e o primeiro romance como fechar e abrir dos olhos já eram realidade, quebrando todos os fatos, quebrando todos os paradigmas, e quebrando até mesmo uma realidade que o destino se impôs à vida do jovem.
Após anos de vida acompanhados por este brinquedo de palavras erradas que a vida lhe deu, a ciência descobriu que aquele jeito único de falar e ouvir os sons das palavras era uma deficiência que ficaria conhecida por dislexia.
Entretanto para o jovem isso não foi uma deficiência, nem mesmo lhe fez diferente, apenas lhe preparou para a vida. Vida que o jovem João deixou marcada, e escreveu com ela a sua própria história”.

A história e a literatura se fundem pelas linhas de um escritor, e isso digo por que a história deste jovem João relatado nesta crônica é a minha história de vida, e este texto autobiográfico que leva a minha assinatura.

Uma cronica do livro  Sonhos do autor Leandro Campos Alves
http://busca.saraiva.com.br/q/leandro-campos-alves






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