LUIS SEPÚLVIDA

Luis Sepúlveda (Ovalle, 4 de outubro de 1949 – Oviedo, 16 de abril de 2020, um romancista, realizador, roteirista, jornalista e ativista político chileno. Residia em Gijón, em Espanha, após viver entre Hamburgo e Paris. Em 1970 venceu o “Prémio Casa das Américas” pelo seu primeiro livro Crónicas de Pedro Nadie, e também uma bolsa de estudo de cinco anos na Universidade Lomonosov de Moscovo. No entanto só ficaria cinco meses na capital soviética, pois foi expulso da universidade por “atentado à moral proletária”, o que significa que andava com quem "não devia".

De regressso ao Chile, fez parte da guarda pessoal do presidente Salvador Allende. E quando aconteceu o golpe militar, em setembro de 1973. levando ao poder Augusto Pinochet, Luis Sepúlvida se encontrava no palácio de la moneda fazendo guarda ao Presidente Allende.

Membro da Unidade Popular chilena nos anos 70, teve de abandonar o país após o golpe militar de Augusto Pinochet. Viajou e trabalhou no Brasil, Uruguai, Paraguai e Peru. Viveu no Equador entre os índios Shuar, participando numa missão de estudo da UNESCO. Sepúlveda era, na altura, amigo de Chico Mendes, herói da defesa da Amazónia. Dedicou ao Chico Mendes O Velho Que Lia Romances de Amor, o seu maior sucesso. Na Nicarágua integrou as brigadas sandinistas. Emigrou, por fim, à Alemanha, onde viveu por 14 anos e casou pela segunda vez, com Margarita Seven. Depois de separar-se, mudou-se para Paris e depois para Gijón, onde reencontrou sua primeira mulher, a poeta chilena Carmen Yáñez, e viveu o resto de sua vida.

AS MULHERES DE MINHA GERAÇÃO

As mulheres de minha geração abriram suas pétalas rebeldes
Não de rosas, camélias, orquídeas ou outras flores.

De frivolidades tristes, de casinhas burguesas, de costumes anexos
Mas de polens peregrinos entre ventos

Porque as mulheres de minha geração floresceram nas ruas,
Nas fábricas se fizeram fiandeiras de sonhos
No sindicato organizaram o amor segundo seus sábios critérios

Ou seja, disseram as mulheres de minha geração,
cada uma segundo a sua necessidade e capacidade de resposta
Como na luta golpe a golpe e no amor beijo a beijo

Em escolas argentinas,chilenas ou uruguaias
aprenderam o que tinham que saber para o saber glorioso
das mulheres de minha geração

Mini-saias em flor nos anos setenta
as mulheres de minha geração não ocultaram nem as sombras
de suas coxas de fora como as de Tânia

Erotizando com o maior dos calibres
os caminhos duros da hora marcada com a morte

Porque as mulheres de minha geração
beberam com vontade o vinho dos vivos
acudiram a todos os chamados
e foram a dignidade na derrota

Nos quartéis lhes chamaram de putas e não as ofenderam
porque vinham de um bosque de sinônimos alegres:
Minas, Brotos, Gatas, Moças, Pequenas, Gurias, Garotas, Velhas, 
Senhoras, Senhoritas, Panteras

Até que elas mesmas escreveram a palavra Companheira
em suas costas e nas paredes de todos as celas

Porque as mulheres de minha geração
nos marcaram com o fogo indelével de suas unhas
a verdade universal de seus direitos

Conheceram a prisão e os golpes
Habitaram em mil pátrias e em nenhuma
Choraram seus mortos e os meus como se fossem seus
Deram calor ao frio e ao cansaço desejos
À água sabor e ao fogo a direção correta

As mulheres de minha geração pariram filhos eternos
Cantando "summertime" os amamentaram
Fumaram marijuana nos poucos descansos da luta
Dançaram o melhor do vinho e beberam as melhores melodias

Porque as mulheres de minha geração
Nos ensinaram que a vida não se oferece em borbotões companheiros
Porém de golpe e até o fundo das conseqüências

Foram estudantes, mineiras, sindicalistas , operárias,
artesãs , atrizes,guerrilheiras, até mães e parceiras
nos raros tempos livres da luta de Resistência

Porque as mulheres de minha geração só respeitaram os limites que
superavam todas as fronteiras
Internacionalistas de carinho, brigadistas do amor,
delegadas de dizer te amo, milicianas da caricia

Entre uma batalha e outra as mulheres da minha geração se deram toda
E disseram que isso ainda era pouco.
Declararam-nas viúvas em Córdoba e Tlatelolco.

Vestiram-nas de negro em Porto Montt e São Paulo
E em Santiago, Buenos Aires ou Montevidéu
foram as únicas estrelas na longa noite clandestina.

Suas prisões não são prisões
porém uma forma de viver para o que der e vier.
As rugas que aparecem em seus rostos
dizem tenho sorrido e chorado e voltaria a fazê-lo.

As mulheres de minha geração
Ganharam alguns quilos de razões que se grudam em seus corpos
Se movem um pouco mais lentas e cansadas de esperar-nos na meta final

Escrevem cartas que incendeiam as memórias
Recordam aromas proscritos e os exaltam.
Inventam a cada dia as palavras e com elas nos empurram.

Nomeiam as coisas e nos preparam o mundo
Escrevem verdades na areia e as oferecem ao mar
Nos convocam e nos parem sobre a mesa posta.

Elas dizem pão, trabalho, justiça, liberdade
E a prudência se transforma em vergonha.
As mulheres da minha geração são como barricadas:
Protegem e animam, dão confiança e suavizam o gume da ira.

As mulheres de minha geração são como um punho cerrado
que resguarda com violência a ternura do mundo.

As mulheres de minha geração não gritam
porque elas derrotaram o silencio.
Se algo nos marca, são elas.
A identidade do século são elas.

Elas : a fé fortalecida, o valor oculto num panfleto
o beijo clandestino, o retorno a todos os direitos
Um tango na serena solidão de um aeroporto
um poema de Gelman escrito num guardanapo
Benedetti compartilhado no mundo de um guarda-chuva
os homens e os amigos protegidos com raminhos de arruda

As cartas que fazem beijar o carteiro
As mãos que sustentam os retratos de meus mortos
Os elementos simples dos dias que aterrorizam o tirano
A complexa arquitetura dos sonhos de teus netos

Isso é tudo e tudo se sustenta
Porque tudo vem com seus passos e nos chega e nos surpreende.
Não há solidão onde elas cuidam
Nem esquecimento enquanto elas cantam.

Intelectuais do instinto, instinto da razão
Prova de força para o forte e amorosa vitamina do fraco.
Assim são elas, as únicas, imprescindíveis
Sofridas, golpeadas, negadas porém invictas
Mulheres de minha geração

Luís Sepúlveda, 1999.
4/11/1949
16/04/2020

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