EU por Áurea Laguna


Nasci pequena, pesando três quilos. Demorei a falar e passivamente olhava para as pessoas que me cercavam, observando bem o que diziam com muita vontade de entrar em suas conversas. Ah, AS PALAVRAS! Como são preciosas! Bem, mas quando pude finalmente me expressar, emiti frases indizíveis e impensáveis, fazendo uso infinito das letras. Inventei vocábulos, renomeei objetos, deixando que todos pensassem que eu fosse louca. Mas não sou, não!

Sou INTELIGENTE! É verdade que às vezes pronuncio termos incompreensíveis para os que me rodeiam, mas não para mim. O que eu posso fazer se sou assim esperta, usando todos os adjetivos que encontro para me qualificar como a MELHOR DE TODAS?

Sei que também sou modesta, ousada, crítica, prestativa, irônica, boa ou má, dependendo do que pretenda alcançar com as minhas atitudes! Bastante objetiva, meço bem cada passo a dar e por esse motivo me julgam uma pessoa calculista. Um dia cheguei a falar mal dos deuses do Olimpo, o que me ocasionou, literalmente, uma tragédia grega. Recebi o castigo da hybris, permanecendo muda por uns tempos. Quanta falta eu senti da comunicação verbal! Enfim, depois de um certo período, tudo se resolveu e recomecei a balbuciar algumas sílabas, até voltar ao meu estado normal, ou seja: tagarela!

Frequentemente formulo perguntas às quais eu mesma respondo dentro de uma lógica incomum, porque demonstro ser especial o meu modo de perceber e enxergar o mundo. Provida dos melhores olhos que já existiram, diferencio objetos e pessoas a uma longa distância, avistando até o que ninguém pode ver. Criativa ao extremo, quando não encontro soluções para as minhas adversidades ou para transpor os entraves surgidos na minha trajetória, utilizo um método que inventei, por meio do qual os supero com facilidade.

Meu maior sonho é comandar um navio pirata. Meus medos limitam-se somente às corujas e aos morcegos. Sou especialista em caçar pulgas, além de contar mentiras, é claro!.

Onde moro? Ah! É um lugar especial! Há muita gente que gostaria de visitá-lo, porque no meu recanto desenvolvemos experiências prazerosas. Somos livres para compartilhar e confrontar nossos pensamentos, sendo o plebiscito usado como forma democrática para resolução de impasses. Assim, enfrentamos juntos todos os contratempos, visto que a nossa sobrevivência depende da adaptação às novas realidades.

Habitamos uma casa antiga e ocupamos seu imenso pomar para as mais divertidas brincadeiras, pois o aspecto lúdico, nesse ambiente, é bastante valorizado para qualquer tipo de aprendizagem. Além disso, por meio dos livros tomamos conhecimento do que homens e mulheres pensaram e realizaram desde tempos remotíssimos.

Temos duas estantes com material para leitura e, à noite, nos reunimos para ouvir e contar histórias, sendo o meu lugar preferido o colo da dona da casa. De grande capacidade inventiva, ela não só faz a leitura das obras que guarda com carinho, como é capaz de condensar narrativas, de modo a torná-las mais atraentes para os nossos ouvidos.

O meu maior aliado, que felizmente reside conosco, é um ser com o qual disputo objetos e opiniões.Temos pontos de vista completamente divergentes e é principalmente no campo das idéias que gosto de estar um passo à frente dele. Pensativo, reflexivo, metódico e dono de um espírito investigativo em que impera a racionalidade, ele prima, por manifestar a conduta própria dos nobres, sendo um bom ouvinte nunca deixando de atender a qualquer solicitação que lhe façamos. Mas para ser exata, o seu maior prazer é desenvolver uma prosa científica com um alguém inteligente.

Eu, não! Sou intuitiva, pragmática e ajo impulsivamente. Pessoas há que desconfiam que eu subjugue meu amigo. De fato é assim mesmo, sou mandona e exigente e penso que todos têm que me obedecer. Faço prevalecer os meus interesses em função do meu egoísmo, exibindo a postura de que a esperteza vale mais do que o conhecimento. Todavia, quando me vejo em apuros é a esse companheiro de traquinagens que recorro para me livrar dos meus problemas, com os seus ensinamentos.

Considerada a mais transgressora das pessoas das quais você já ouviu falar, quando apronto alguma arte, logo sou repreendida. Se fico zangada, choro, rogo pragas ou corro para o colo da minha mãe em busca de um afago, e ela me consola, dando-me de presente qualquer objeto de que eu goste muito.

Completei 102 anos de idade no final do mês de dezembro último e meu nome está gravado na memória de várias gerações de leitores brasileiros e estrangeiros. Alguns teóricos consideram-me uma das personagens de ficção mais conhecida da história da nossa literatura, competindo com a Capitu. Mas, a bem da verdade, nunca houve uma boneca assim como eu: EMÍLIA, a Marquesa de Rabicó, para quem nada é proibido, dentro de determinados parâmetros impostos pelo meu criador, o fantástico Monteiro Lobato.

Áurea Laguna
Especialista em Monteiro Lobato
Conto inserido no livreto 'Homenagem para Monteiro Lobato'.
ISBN - 978-85-63853-25-7


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