O GUARDIÃO DOS DIAS

— Estás aí menina? — Ela sorri ternamente dizendo-lhe:
— Já te disse que não sou menina, e se duvidar sou mais velha que tu. Diz lá o que queres, porque já estou de saída e só volto amanha.
— Vou ter alta amanhã, e provavelmente não vou te ver mais.
 Provavelmente.  Repetiu ela. 
Fazia quase seis meses que Irina estava naquele hospital, e era mais ou menos o tempo de internação Mickael.
A ala psiquiátrica era carente de profissionais e Irina nem queria estar ali, mas um acontecimento a fez mudar de ideia, trazendo-a de volta e agora já acostumada, ela circulava naturalmente no ambiente.
Uma amiga, a Marina, pediu-lhe há uns meses para cobrir sua folga, pois não podia faltar, mas tinha que buscar a filha que chegava de viagem.
— Só por dois dias Irina. — Dizia ela ao telefone — Estão com falta de pessoal aqui e não quero prejudicar ninguém. As fichas dos pacientes estão todas em ordem, e tu só tem que administrar as medicações, ajudar na rotina de banho, café da manhã e almoço. E também já avisei a diretora e ela autorizou, só pediu que tu tragas o teu certificado de curso. Como Irina estava de recesso nessa época e não tinha quase nada para fazer, então aceitou.

O primeiro dia de trabalho transcorreu tranquilo, mas ao chegar ao segundo dia...
Logo cedo havia muita movimentação, por conta de um paciente recém chegado. Aquilo foi como se o mundo de paz tivesse desaparecido, quebrado. O sujeito gritava de um jeito que era perturbador. Era em italiano ou um dialeto muito parecido. Os enfermeiros amarraram-no e o medicaram, levando-o para uma sala acústica branca.
Um dos encarregados do transporte que o trouxeram entregou-lhe uma prancheta.
— O "abacaxi" e seu agora, e não vá mata-lo, pois ele diz ser um anjo. E retirou-se dando risada.
Irina se atrasou com sua ronda diária neste dia, pois os demais pacientes ficaram nervosos com toda a agitação.
— Que houve mocinha, mais um louco caiu aqui? Perguntou-lhe uma paciente.
— Não senhora, é só um jovem perturbado que precisa de ajuda. — Respondia suavemente.
Na hora do almoço Irina vai até a sala branca verificar se está tudo bem...
O rapaz está quieto, todo amarrado ainda, parecia dormir, ia se retirando quando:
— Moça... Fala comigo. Sei que estás aí, sinto o teu coração bater. Diga qualquer coisa...
Calada ela se aproxima dele, devagar. E ele continua. — Queria pedir desculpas. Fiz tudo errado...
— Por que?
— Atrapalhei-me todo, não tinha ideia de que ser gente era tão confuso. Parecia ser tão fácil. — E quase adormecendo o rapaz continua... — Tanto poder e não saber usar...
— Descanse, tu ainda estás muito confuso e cansado. Estás seguro agora.
— Eu sei, estou bem porque estou contigo. Obrigado.
Irina não disse nada, e o rapaz pareceu voltar a dormir. Ela passou os olhos por seu prontuário.
"Homem encontrado totalmente alterado, em crise psicótica. Não porta documentos e disse se chamar Mickhael... Fala um outro idioma, possivelmente latim, ou italiano arcaico."
Terminando o seu dia de trabalho, Irina se despede aliviada. O tal paciente não saia de sua cabeça, mas não era mais seu problema.

A rotina diária corria bem, quando uma semana depois a diretora do hospital liga.
—  Irina tu estás disponível para trabalhar aqui por uns dias? A Marina teve uma queda feia, foi hospitalizada e deve que ficar em casa por uns tempos...
Quando desliga o celular, Irina olha para Marina.
Era a diretora chamando-me para substituí-la novamente amiga.
— Que bom Irina! Os pacientes não podiam estar em melhores mãos.
— Não me bajule, faz favor. E ambas riram...
— Fiquei de dar resposta em uma hora. Quem vem para ficar contigo? Porque só vou para a hospital se tiveres uma companhia, pois não vou deixa-la sozinha aqui.

Marina sorri. — Só fico hospitalizada até sair os resultados dos exames, e provavelmente amanhã eu vou para casa. Podes ir tranquila! A Janete tirou uma licença e vem para ficar comigo.
— Espero um dia ter uma filha amorosa como a tua.
— E agora, quem está bajulando quem? Risos...
Marina era como uma irmã, mas Irina tinha receio de contar-lhe o que se passava ultimamente. Isso tinha qualquer coisa a ver com aquele paciente estranho, e agora que ia voltar a trabalhar lá, teria tempo para desvendar a coisa toda. E antes que a visita terminasse, ela retorna à ligação para a diretora. 
—  Eu fico até Marina retornar então.
Como a queda de Marina resultou em várias fraturas, por recomendações médicas, ela tirou uma licença de trabalho mais prolongada, por isso Irina continuou na clínica desde então.

Foram 6 meses e agora Mickael estava pronto para ter alta.
— Para onde vais Mikhael? Nunca veio ninguém sequer visita-lo nestes meses que estas aqui.
— Eu tenho um irmão que vive no interior e virá me buscar pela manhã.
Irina gostava do rapaz e sempre que podiam conversavam muito... Alguns dos internos diziam não entender nada do que ele dizia, o que era bem estranho, pois ela o compreendia tudo perfeitamente.
— Fico contente que não estejas na rua, e desejo-te boa sorte e que não precises mais voltar aqui. Queria também dizer-te que nestes meses que estou aqui, você me ajudou a cuidar melhor dos pacientes. Eles adoram ouvir minhas histórias, ficam tão mais calmos.
Me sentia insegura e medrosa, e tu me deu confiança... Me sinto bem e os pacientes também, e tu tem grande participação nisso. Estou triste que tu te vais, de verdade.
Mikhael imóvel estava de costas para Irina olhando pela janela, como se escutasse o vento.
— Sabes quem sou eu menina?
Com os olhos marejados ela acena que sim. — Eu podia até negar, mas venho escutando seus mantras todas as noites.
— E tu quem é? — Sou Irina, uma Enfermeira qualquer que um dia por acaso, veio aqui parar. — Ele se vira para ela
— Não é por acaso que estás aqui. E eu vim por tua causa, porque és igual a mim. Escutas-me rezando meus mantras de sua casa, e achas isso comum?
— Mas não sou igual a ti, eu nasci de família, tive irmãos, infância. Não posso ser uma igual a ti Mikhael.
— Sim, é verdade. Tu tiveste uma família e perdeu, acabou sozinha, porque os irmãos foram adotados por outras famílias e tu também. Eu sempre falei com contigo, lembra-te? Um dia você chorou tanto que se fechou, ficou surda e nunca mais ouviu minha voz. Eu podia recitar meus mantras todos, e tu não ouvia. Agora isso mudou e eu quero que tentes hoje à noite. Recite seu mantra depois de ouvir o meu.
— Eu tenho meu próprio mantra?
— Sim e tem muitas noites eu espero que recites, depois de mim. Isso sempre foi assim, desde o princípio...
Sem saber se acredita ou não, Irina dispara:
— Por que nascemos aqui? Lembro-me que dissestes quando chegou aqui, que tinha feito tudo errado. Que ser gente era confuso... Explique faz favor.
— Nascemos aqui para aprender, sentir, e entender as pessoas. "Nós" não temos esses sentimentos contraditórios, somos soldados e obedecemos a ordens, normas que não são difíceis de seguir, e por vezes não compreendemos os humanos com seu enorme poder, eles podiam fazer tanta coisa, e têm uma coisa muito maior, o livre arbítrio. Então de tempos em tempos ganhamos o privilégio de nascer gente. E Mikhael transborda em lágrimas...
— Mas algo que não conhecíamos acontece no humano, é um misto de dor e fome, raiva e alegria, medo e solidão. Tu sabes o que digo, eu sei que sabe. Era para estarmos juntos, nós dois, mas eu te perdi, justamente quando tu te perdeste. A nossa comunicação foi interrompida pela tua dor.
E os dois se abraçam...
— Hoje à noite tu recitas o teu mantra depois de mim? Ela acena afirmando com a cabeça. —Fica comigo Mikhael.
— Não posso ficar por enquanto, mas um dia...
E naquela noite Irina proferiu o seu mantra, e lembrou de cada palavra.
                

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