APAIXONADO POR UM OLHAR


A Brasileira

Todos os Sábados e durante anos fazia um percurso que me dava imenso prazer.
Depois de tomar o pequeno-almoço na Brasileira no Chiado, fazia uma ronda pelas livrarias. Primeiro visitava a Sá da Costa onde me extasiava com a profusão de livros empilhados em enormes mesas bem como nas vastas prateleiras. Depois de me inteirar das novidades literárias, seguia para a Bertrand. Aqui, detinha-me mais um pouco por via de um pequeno recanto onde ainda estão uma mesa e duas cadeiras envolvidas por prateleiras contendo livros somente de um escritor pelo qual tenho uma particular simpatia. Trata-se do Aquilino Ribeiro o homem que escreveu Grande Casa de Romarigães, Volfrâmio, Terras do Demo, Maria Benigna e de tantas outras obras que deliciam os amantes da boa escrita. Era neste recanto, que o escritor se sentava para ler, meditar ou conversar com algum amigo que aparecesse.
Quase sempre roçava com os dedos as lombadas daquelas fiadas de livros como sinal de respeito e admiração. Era para mim, aquele recanto, uma espécie de lugar de culto.
Retomava a minha peregrinação descendo a Rua Garrett virando depois para a Rua do Carmo. Entrava na Portugal e, finalmente na Lello onde permanecia mais tempo por virtude da amizade que me unia ao encarregado da livraria.
Porém, antes de transpor a porta, tinha como quase uma obrigação de parar defronte a uma velhinha que encostada a uma parede e sentada no passeio, estendia a sua mão trémula a quem passava. Por abrigo, somente um xale preto pela cabeça que usava quer no Verão como no Inverno. Mas, é nesta estação do ano que os deserdados da sorte mais sofrem. Aquela velhinha apanhava a chuva por vezes gélida impelida por vento agreste que fazia tremer de frio o mais agasalhado e, aquele ser frágil, no ocaso da vida, tinha só a cobri-la aquele frágil abafo que tantas vezes o vi ensopado. Tanto sacrifício, tão mal tratada, para no fim do dia levar umas escassas moedas a fim de fazer face à fome.
Condoía-me aquele ser em particular e, todos os Sábados, dava-lhe com alegria uma nota dobrada em quatro que lhe metia na mão esquálida e tremente. Nunca lhe ouvi uma palavra de agradecimento nem disso estava à espera. Agradecia-me de outra forma: levantava os seus olhos lindos cor do céu e olhavam-me tão ternamente que o agradecido era eu. Recebia em dobro.


Gostava muito daquela velhinha que durante anos me habituara a receber dela a esmola daquele olhar doce.
Num Sábado de Verão, não a encontrei no lugar habitual. Estranhei a sua ausência sem que no entanto tivesse pensado no pior. Na vez seguinte, a pessoa de olhar meigo continuava ausente. Entrei na livraria e mal tinha pegado num livro, oiço nas minhas costas a voz de alguém chamando: - senhor! Quando me voltei vi um homem magro de cor macilenta mostrando querer falar comigo. A um empregado zeloso que vinha pronto a evitar que eu fosse incomodado fiz-lhe sinal para que não se intrometesse. Virei-me para o homem e perguntei o que desejava. Este ser visivelmente abatido de aspecto doentio começou por falar de cabeça baixa e titubeante. ─ O senhor não me conhece mas, eu habituei-me a vê-lo todos os Sábados dar esmola à minha mãe. Também eu sou um pobre e pedia no passeio oposto. Prevendo o que tinha acontecido, mesmo assim, perguntei por ela. A resposta veio numa só palavra: ─ morreu! Fiquei momentaneamente em silêncio. O homem prosseguiu: ─ A esmola que o senhor dava, servia para pagarmos o aluguer da nossa humilde casa e para mais alguma coisa. A minha mãe era muda mas soube dizer-me que era o senhor o nosso benfeitor. Um nó na garganta impedia que eu mantivesse o diálogo. A minha velhinha de olhar meigo era muda. Nunca suspeitara.
Ainda mal recomposto perguntei se não podia trabalhar. Baixou o olhar e confessou: ─ Trabalhei na construção civil até que a tuberculose me apanhou. Estive internado num sanatório durante muito tempo. Quando saí, fui ao meu antigo trabalho mas não me aceitaram. Percorri tudo pedindo por favor qualquer trabalho que fosse, a fim de fazer face ao meu sustento e ao da minha mãe mas nada consegui. A única coisa que restava era pedir esmola e é o que faço.
Com o coração oprimido e revoltado com a sociedade ignóbil onde nos inseri-mos, voltei-me ligeiramente de lado, dobrei a nota como sempre fazia com a mãe e ofereci-lha dizendo: ─ Obrigado por ter contado a vossa história. È uma história de vida que me comoveu e, mais, por nunca ter abandonado a sua mãe, pessoa que me prendeu desde o primeiro dia que a vi. Não fazia ideia que era muda mas, essa falta, era suprimida pelo seu olhar lindo que me fascinava. Em memória dela pode contar igualmente com o mesmo contributo para que de algum modo, possa tornar menos pesado as suas carências.
Despediu-se de mim com os olhos marejados e um pouco à pressa como que envergonhado. Dei graças por poder assim continuar a ajudar um ser que foi gerado por alguém que jamais esquecerei.
Já de regresso, sobraçando uma data de livros, ocorreu-me este pensamento: Quem sabe se Deus não se serviu de mim para minorar um pouco a pobreza daquelas suas duas criaturas?
Victor Serra

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