O CAMINHO DO GUERREIRO


Penso que já o disse algures mas tenho necessidade de - mais palavra, menos palavra, o repetir. Por volta dos oito anos verifiquei que os meus irmãos mais velhos me consideravam um bastardo no seio familiar, todavia tal não era verdade, não sou um bastardo pois no ano 1998, única vez que visitei Portugal nos últimos vinte anos, tive a ousadia suficiente para perguntar e obter resposta satisfatória dos lábios da minha querida e santa mãe, isto pouco tempo antes da sua morte física quando esta já tinha quase noventa anos de existência; que me garantiu que criou nove filhos e que todos eram filhos do homem com quem casou, isto é: o meu pai; mas mesmo que tal não correspondesse à realidade, que culpa pode ter uma criança dos possíveis devaneios da sua progenitora para sofrer, tal como eu sofri o desprezo de incultos irmãos e o olhar de soslaio dos analfabetos vizinhos?

Com catorze anos de idade fui condenado em Tribunal por roubo. Preso, algemado e castigado pela justiça e pelo dizer do povo, fui obrigado a suportar os olhares de escárnio das gentes do lugar, acessos de fúria e descontentamento do meu progenitor - e circunstancialmente obrigado a fugir dos meus mais queridos que adorava por instinto, caráter ou laços de sangue. Pois bem, todo esse imbróglio em que as circunstâncias me colocaram foi pura mentira. Na minha longa existência jamais subtrai a outrem o que quer que fosse sem disso ter necessidade para viver, à parte o escamotear de pequenos nadas enquanto criança a fim de me ser possível subsistir.

Com vinte anos fui punido duramente pelo meu capitão apenas por despeito de um sargento. Não foi justo. Eu apenas afirmei que lutava com esse sargento, o vencia e lhe chupava o sangue... Que tem isso de mal para ser castigado como fui? Com vinte e oito anos tive que fugir de Moçambique - as forças então no poder foram a minha casa para me limparem o sarampo... - simplesmente porque adolescente e inocente que era acreditava numa sociedade democrática e não na sociedade dita comunista. Aos trinta e oito anos publiquei por minha conta um livro intitulado: Aqui (Portugal) Moçambique, com uma primeira edição de 5.000 exemplares, esgotados em pouco mais de um ano, que foi aplaudido por vários críticos estrangeiros - é livro de referência na Sorbonne de Paris - e em Portugal ninguém falou dele. Tendo em conta o esforço que empreguei na criação desse livro, a falta de comentários à obra não terá sido injusta? Com quarenta anos fui despedido pelo meu irmão primogénito da sua próspera empresa - que na realidade se tornou grande e próspera, em muitos casos, graças ao meu labor - porque em vez de trabalhar oito horas por dia, pois era essa a minha obrigação, dedicar doze horas por dia à empresa dele. Não é para rir, é a verdade. Não foi esse gesto uma injustiça? Aos quarenta e quatro anos fui preso, roubado e condenado apenas porque confiei num canalha que julgava meu amigo e que por sua causa fui obrigado a fugir do meu próprio país que tanto amo. Com cinquenta e oito anos fui ilegalmente expulso do estabelecimento comercial que possuía na Bélgica pela polícia de Bruxelas a mando de um delegado de justiça, e posteriormente fui vigarizado por um advogado que dizia defender-me no processo do tal comércio, isto na Primeira Instância do Tribunal de Bruxelas que, sem me condenar, julgamento terminado ajuizou que eu tinha direito a um euro simbólico...

Concluindo, esta perda do meu estabelecimento avaliado ao tempo em mais de 50.000 euros colocou-me na miséria. Finalmente, aos cinquenta e nove anos, depois de quase quarenta anos de vida em comum com a mãe dos meus filhos, esta depois de uma azeda discussão no dia do meu aniversário, resolveu abandonar o lar em que vivia e fugiu para casa do nosso filho e alguns meses depois quando lhe fui bater a casa para me dar de comer... o melhor que ela fez foi chamar a polícia para me por a andar da sua porta. Como podem verificar pelo curto trecho que vos dei a ler, se resumisse a minha vida num livro sem um pouco de fantasia, o livro seria mesmo muito pequenino... Bom, vamos ao mais importante quando não..

Como não sou literato formado em Faculdade de Letras, sem engenho para criar um bom romance, resolvi continuar a escrever como sei. Penso e espero que o leitor compreensivo e interessado seguirá os meus sarrabiscos com satisfação, contudo seria bom possuir um bom fio de Ariadne para ligar os meus textos e depois, se tiver tal desejo, poderá fazer, por si mesmo, o tal romance de aventuras... que foi realmente a minha vida, separando com inteligência o real do imaginário, coragem! Não sei se o que escrevo é um romance. Talvez seja um romance.

Antigamente dizia-se que um romance era uma narração, verdadeira ou falsa, em prosa ou em verso, escrita em língua românica. Hoje diz-se que romance é uma obra de aventuras imaginárias ou retiradas da vida real e combinadas de modo a produzir livros para se ganhar dinheiro... Concluindo: o importante é ganhar dinheiro. Em verdade quando fazia os meus livros também pensava no dinheiro que daí poderia advir. Sim, nesse aspeto não sou muito diferente dos demais e sem dinheiro não é possível viver. O problema é que com os livros que vendia tinha sempre dificuldade em arranjar valia suficiente para viver com uma certa dignidade e desse modo era obrigado a arranjar qualquer emprego, trabalho ou negócio para me ir sustentado e aos meus. Por isso nunca tive a sorte de poder escrever e viver a meu gosto.

Nos próximos tempos, se os deuses me ajudarem, talvez consiga escrever e coordenar todos os apontamentos feitos ao longo da minha existência de modo a possuir os elementos que julgo mais necessários a fim de transmitir uma ideia mais exata sobre a minha personalidade. Todavia para o fazer, tenho que ir buscar alguns textos a pequenos livros que editei. Se tomarmos em consideração que esses livrinhos, para além de bastante infantis, já foram editados há muitos anos e tiveram uma tiragem muito limitada, penso que não haverá grande mal. O mais certo é não haver muitos exemplares com vida. O que vos posso garantir é que em negócios de Cafés ou trabalhar para os outros, com mais de sessenta anos não quero mais pensar. Esta coisa de escrever na terceira pessoa para evitar responsabilidades, colocar no frontispício do livro a palavra Romance para evitar comparações com a existência pessoal do autor, tudo isso é muito bonito para os verdadeiros escritores ou para indivíduos conhecidos do grande público.

Não sou filósofo conceituado, escritor de renome, político influente, estrela de cinema ou do desporto mundial. Sou apenas um indivíduo vulgar que um dia pensou em escrever para mostrar à família e aos conhecidos a razão por que em certas circunstâncias reagia de maneira diferente dos outros e depois continuou a escrever.

A realidade é que as pessoas que em mim originaram a ideia de transmitir ao papel aquilo que em situações conflituosas não queriam ouvir da minha própria boca já desapareceram quase todas deste mundo e eu mesmo já não devo viver muito tempo, dos que ainda respiram não me vou preocupar com o que de mim possam dizer ou pensar, na medida em que a existência dos seres humanos simples como eu, na sociedade dos nossos dias e na realidade é uma verdadeira lástima. Não se pode confiar em ninguém, nem nos de fora nem nos da casa. Tem que se ter cuidado com as notícias fornecidas por televisões, emissoras de rádio, jornais... Tem que se ter cuidado com o pão que se come e o vinho que se consome... Com os medicamentos e com o vestuário, com os... Vocês sabem isso tão bem como eu. Sendo assim vou continuar a escrever. Por vezes tenho que o fazer na terceira pessoa porque penso que a imagem que quero transmitir ao leitor se torna mais clara. Todavia prefiro escrever na primeira pessoa. Penso que é mais natural e mais real; é verdade que, mesmo com todas as liberdades concedidas pelas novas democracias, o escritor realista – por vezes – passa por certas dificuldades, recebe ameaças de morte, tem que viver escondido e a sua existência, por causa do seu desejo de verdade e liberdade volta-se contra ele, contudo...

Aparentemente, tendo em conta as circunstâncias em que me encontro, tenho o pressentimento que o Grande Criador cometeu um grosso erro ao escrever a peça em que me sinto inserido, - e que o prodigioso Balzac intitulou de Comédia Humana - colocando-me a representar um papel que, em princípio, não deveria ter sido escrito para um indivíduo com a minha maneira de ser. Passei toda a minha existência julgando estar a dar o melhor de mim em favor dos outros, cumprindo assim o desejo do Grande Arquiteto; finalmente sou obrigado a reconhecer a cruel realidade de toda a minha existência, ou seja: ao meditar sobre o modo como vivo, tenho que aceitar a realidade dos factos e reconhecer que vivi sempre enganado. A verdade é que os Mestres que de mim fizeram um ser espiritual, amoroso, leal, corajoso e puro, deveriam ter-me ensinado também o contrário destes conceituados preceitos e avisar-me que tais conceitos eram apenas romance... Pois que o mundo desprezível em que subsisto não possui lugar para gente simples, embora temerária, humanitária e curiosa de saber como eu, é pena!

Penso que a momentânea situação em que vivo é absurda em relação ao que deveria ser. Embora reconheça por factos evidentes que neste mundo casos idênticos ao meu existam aos molhos. Gostaria de afirmar, aqui e agora, que a necessidade que tenho de falar de tudo que me aconteceu é a tal ponto grave que quase poderia considerar tais acontecimentos como um caso de vida ou de morte. Não estou a brincar. A minha existência de um instante para o outro tornou-se de tal maneira absurda que nem sei para onde me virar. Eu sei que, aparentemente, absurda é a existência de cada um de nós todavia...

O baralhar de ideias que perpassam no meu cérebro é enorme devido às dificuldades económicas e sobretudo razões emocionais porque passo. Contudo preciso de continuar a escrever, quando não a minha saúde vai esfrangalhar-se em mil bocados e adeus escritor... Quando um indivíduo tem um objetivo e não possui valia suficiente para adquirir o que pensa ser o melhor, contenta-se com o que aparece. Se a prestigiosa marca de motores Mercedes não te dá crédito contenta-te com o crédito da Renault e cala-te...

Por vezes o necessitado sabe bem que o que se lhe oferece não é nada do que verdadeiramente precisa, mas a verdade é que a necessidade obriga. Depois, com a ajuda da imaginação, esperteza ou inteligência, o engenheiro... tenta fazer o melhor. O patrão em princípio e depois os colaboradores do ofício, no contacto direto com o público, devem ter sempre um sorriso nos lábios. A simpatia é obrigatória e faz parte do negócio. Se assim não for os clientes não vão ser número suficiente para manter o comércio ou empresa. Toda a gente sabe que, quanto mais mercadoria existir no estabelecimento ou mais imaginação e saber no cérebro do engenheiro, mais possibilidade há em prosperar.

A higiene e o bem servir, o sorriso, educação e respeito pelo local em que se labora, deve ser cuidado, depois... A que propósito vem isto? Bom, como diz o provérbio: A tenda quer-se com quem a entenda! – O que pretendo dizer é que se não estás preparado para um negócio não deves entrar nele; pois que se é verdade que no meu caso específico conheço a maneira de gerir e desenvolver positivamente qualquer tipo de comércio, reconheço também que o meu caráter demasiado sensível jamais me permitiu enriquecer. A verdade é que ao relembrar os comércios em que estive envolvido, sou obrigado a reconhecer que a mais-valia que ia produzindo nos meus negócios sempre as distribui por gente que eu pensava terem mais necessidades básicas de existência que eu, e essa é talvez mais uma das razões porque me encontro nas atuais circunstâncias.

Atualmente não compro jornais, não saio para falar com ninguém, não tenho compromissos com ninguém, não... Um dia destes fui ao Café do Sérgio Taveira e não sabia que dia era... Sempre imaginei o instante em que finalmente poderia sentar-me à minha secretária e poder, sem ter mais em que pensar, escrever e ler, mas não do modo como as coisas aconteceram e estão a suceder. Começo a ter saudades do meu Café, dos clientes, da vida corriqueira de todos os dias, dos conflitos com a minha ... Na realidade quem sou? Comerciante, tasqueiro, escritor, humanista, filósofo... Com verdade, mesmo que o não queira, pertenço pela genética a uma escola espiritual. Estudo nos laboratórios da natureza tudo quanto me é possível, perscruto os segredos da alma humana e sempre que posso, embrenho-me no mistério do cosmos.

Nos meus tempos de guerra, jovem adulto pleno de inocentes ideais patrióticos, crente e admirador do Bushido ou Caminho do Guerreiro - Código de conduta de vida para os Samurai, influenciado pelos conceitos do Budismo, Xiutuismo e Confucionismo, durante o período da ditadura militar feudal de Xogunato Tokogawa estabelecida no Japão em 1603 por Tokogawa Leyaju, os termos do Bushido ficaram formalizados no Direito Feudal Japonês - sentia-me capaz de levar o meu ideário a limites extremos. Atualmente, com mais de sessenta anos, embora a força e coragem exista ainda em mim, realmente já não possuo grandes ideais. Por isso, vou continuar o meu Caminho do Guerreiro – no bom sentido do termo Guerreiro - pois no momento não tenho intenção de praticar o ritual suicida, quer o nomeiem Seffuku ou Harakiri! Neste momento o adversário mais tenebroso com o qual travo minhas batalhas é o ressentimento e sofrimento, mas como nunca me rendi ao inimigo, ainda não vai ser desta vez que o irei fazer. Sei que qualquer dia o meu corpo terá que desaparecer, todavia, antes que tal aconteça, vou continuar a minha preparação para a batalha final.

Bruxelas
Bernardino Gomes De Oliveira
(Extracto in Companheiros de Solidão)

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