TIRO DE SORTE

“Quero uma arma se faz favor! Tenho pressa… quero esta aqui! Pode ser esta?”. O Funcionário da Loja de Armas dirigiu-se à vitrina, e com um acenar de reprovação sugeriu: -“Talvez essa não seja a mais indicada!”. “Mata?”- questionou o Cliente sem pingo de hesitação. “Sim! Com certeza que sim! ” – retorquiu o Funcionário, levantando o tampo da vitrina. “Quanto custa? Tem munições? Quero munições… muitas…”. – “Vejo que tem, realmente, muita pressa. Não lhe quer pegar primeiro? Ver se o modelo se adequa à sua fisionomia? Olhe que as armas não disparam sozinhas! Talvez queira experimenta-la no nosso túnel de tiro.”. “Não! Não quero experimentar em túnel nenhum! Dê cá isso para ver se me amanho a carrega-la com as munições.” – “Certamente não esperará que o faça! Nunca neste local da loja.”. “Passe para cá essa merda…” disse o Cliente gritando e arrancando-lhe a arma das mãos. Provocado pelo acto tresloucado do Cliente, o cenário diante dos olhos do Funcionário era agora de todo improvável e inimaginável no momento em que acedeu atendê-lo! O Cliente empunhava a arma com uma das mãos, e com a outra ia carregando o tambor numa rapidez estranha para quem, momentos antes, parecia nada entender sobre tão mortífero utensílio. Sem qualquer tipo de contemplação, e num súbito desespero, cerrou um dos lacrimejantes olhos. Levantou o braço que empunhava a arma já carregada, e ignorando as palavras suplicantes saídas da boca do Funcionário, apontando-lhe à testa, transferiu toda a emergente raiva para a ponta do indicador que premiu o gatilho. Após ruído estertor emitido pelo disparo, um silêncio sepulcral contrastante com o aceso momento protagonizado anteriormente por dois actores em peça de significativa carga dramática. Uma improbabilidade imputada a um deles. Sim! E à raiva e sede de fazer contas com a vida. O Cliente não tinha no seu menu de alvos o epíteto do pobre Funcionário, que não fez mais senão fornecer-lhe o carimbo com que selaria a sua vingança. Num agitar interior, e numa inundação de leveza e bem-estar nunca antes experimentado, o Funcionário sente o corpo a responder a uma derradeira tentativa de sobrevivência. A quietude é então interrompida pela sua estridente gargalhada. Levantando-se do chão com a testa a jorrar sangue, admirando oponente ocasional, inicia uma sequência de movimentos ritmados e compassados rapidamente reconhecidos como a ilustração de uma acção teatral dançada. Ainda sem compreender o que estava a acontecer, o Cliente aponta-lhe ao peito e atira novamente a matar, desta vez certo que o perfurante projéctil ao atingir o coração lhe daria um indubitável destino final. Não há incertezas garantidas quando a certeza de uma improbabilidade se dá a conhecer, e nada melhor para o comprovar que novo assomo de folguedo saídos da sua cabeça, tronco e membros. A interpretação de movimentos executados no pretérito por Baryshnikov, Weidman e Hawkins sem que o Cliente se aperceba de tamanho deleite provocado por profícua, e de todo surpreendente, metamorfose. Se o desespero foi suficiente para motivar a entrada na loja, esse mesmo desespero despoletou a necessidade de a abandonar em função do sucedido. Daquilo que a visão lhe acabara de oferecer e que a incredulidade não ousava apagar. Um Funcionário feliz! Um designer da dança moderna, com orifícios na testa e no peito a despejar o sangue que ainda lhe restava, sujando suas vestes. Uma morte certa feita numa vida inesperada… renovada! Num derradeiro gesto, o Cliente abandona a Loja de Armas pela entrada principal empunhando o metal mortífero que, afinal, se fundiu e se fez vida. Fedendo a pólvora, e marcado pelos salpicos de sangue transferidos do corpo cada vez mais dançante do Funcionário, e sem largar a arma, procurou olvidar tamanha ignomínia. Deu início a corrida desenfreada na esperança que quanto maior fosse a distância daquele abominável sítio, maior seria a distância entre a insanidade própria de quem quer matar, e de quem atirou pela morte, e afinal deu… vida. Do lado oposto da rua um silvo familiar seguido de um clamor autoritário: “Alto! Polícia! Pare em nome da Lei!”. A princípio tentou ignorar a ordem prontamente dada. “Pare ou… disparo!” repetiu o Polícia sem se aperceber da chama emitida pelo cano da arma entretanto disparada… outra vez disparada! Limalhas reluzentes saídas pela forma tubular que projectou a munição e atingiu o Polícia na garganta, que o fez dobrar sobre os joelhos e tentar, com as mãos, segurar no jacto sanguíneo saído do local exacto atingido pelo projéctil. Desta vez o Cliente não quis aguardar e confirmar se o resultado do disparo teria desfecho idêntico aos disparos anteriores. Se o destino seria confirmado pela acção tomada, ainda que a vítima fosse novamente outra carta fora de um baralho de presas programadas. Retomando os freios da marcha acelerada, é de forma surpreendente interrompido por um lançar de braços sobre as suas pernas. Um mergulho sem rede por um Polícia a jorrar sangue pelo pescoço. O abraçar de pernas que o fez largar orifício a debitar liquido de vida! A irromper eloquência numa retórica contínua e ininterrupta a fazer lembrar os mais distintos oradores da Humanidade. Falar de Humanidade em acto de infame desumanidade. Nunca Hermógenes, Sócrates e Voltaire em plenitude iluminista imaginariam mais um tiro disparado sem cumprir os preceitos da sua função. “O que diabo me está a acontecer? Que putas de balas são estas que não matam! Foda-se!”, bradou o Cliente em exasperação. “Que maravilhoso Dom esse o seu! Fazer da certeza que tudo vai terminar, da finitude, um sopro de vida! Um novo fôlego de vida!”, ia soltando estas palavras em modos trovadorescos o Polícia, enquanto rebolava pelo chão numa felicidade tal menino em dia de aniversário a abrir o mais desejado dos presentes. Incrédulo, frustrado, confuso… deixou o Cliente tombar seu corpo sobre o lancil do passeio assumindo silhueta de prostração. Sentado de braços caídos, e de cabeça entre as pernas, suspirou. Não sem antes dar conta que poderia ter nas mãos a solução para todos os seus problemas. Uma epifania surgida entre pensamentos tumultuosos: “Se aquilo que procurei para trazer a morte afinal dá vida, porque não utilizar esta arma de comportamento antagónico em mim? Que projécteis miraculosos são estes que usei sem hesitação sobre aqueles que ousaram questionar as minhas intenções? Porque não eu a exultar de felicidade sob a forma de passos de dança, ou a rebolar pelo chão? Procurei o que queria para matar e encontrei, naqueles que não queria abater, a mais pura razão para continuar a viver!”. Decidido apontou à cabeça e disparou. Pela rua e bairros circundantes ecoou o som do disparo. No passeio, amparado pelo rebordo do lancil, jaz um corpo morto… a jorrar incessantemente sangue por um orifício na cabeça. Um orifício feito por um projéctil diferente dos utilizados anteriormente pela arma que o desferiu. Sorte ou azar? Quem sabe! Talvez não passasse apenas de um vulgar defeito de fabrico.
Rui Guedes
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