A DONA DOS MEDOS

_Me sinto murchar na escuridão.
_Por que?
_Não sei...Me ajude por favor. Sua tristeza era tão evidente...
Vivo assim tem muito tempo. Nunca  gostei de intromissões, pois todos tem tantas críticas, não conseguem compreender a diferença entre acrescentar algo ou diminuir o próximo. Tantas certezas de tudo, é como se o mundo realmente fosse único e so existisse um caminho bom. Isso presta, aquilo não é bom. Não ande com fulano, beltrano é vagabundo. Não saia sozinha, não chegue tarde. Passei parte da vida escutando  não isso, não aquilo.
_Quem dizia!
_Minha mãe...Ahahahahhh. Agora devo entender que meu "problema" começa com ela! Todos devem mesmo começar com ela, afinal saímos de dentro da mãe não!
Depois teve os outros também doutor...Todos entoando o mesmo refrão. "Não"
Mesmo quando não nos conhecem direito, têm opiniões críticas e destrutivas. Quer um exemplo simples?
Uma vez tive que preencher um formulário num curso e coloquei  que minha instrução religiosa era
Judia, pois saiba que passei quase três meses ouvindo piadinhas desagradáveis por conta disso, e olhe que nem sou praticante...Hehehe
_Mas se cansaram e pararam, não foi?
_Não doutor, o curso acabou neste prazo. Mais risos...
Até o mais sério dos doutores tinha que se rir, diante de tal criatura.
Esta moça era cheia de beleza interior, tinha inteligência, senso de realidade e consciência da própria loucura. Um verdadeiro desafio para psicólogos que pensam que só consultar a cartilha de bolso e já conseguem um prognóstico brilhante e preciso.
Daniel se sentia atraído por seu caso. Estão nestas conversas há três meses e ainda não consegue identificar ou diagnosticar esta paciente, quando pensa ter encontrado o "fio" do problema ela mesmo aponta novas informações ...Olha que, esse era reconhecidamente  um especialista no assunto.
Dia destes quando terminaram a consulta ela disse-lhe sorrindo abertamente:
_Quando oficializamos nosso namoro?
O doutor Daniel ficou vermelho até a raiz dos cabelos com tal observação.
A primeira vez que esta apareceu em seu consultório, foi bem clara em dizer que só estava ali por força de sua melhor amiga. E era verdade, sua amiga Vania a trazia todas as vezes e esperava na saída. Isso aconteceu até sua quarta consulta...
_ Você vai sim...Ou então nunca mais falo com você.
_Como vê doutor, estou aqui por livre e espontânea pressão.
Margarida  começou a se isolar gradativamente depois da separação. O marido se foi, por causa de outra.
Isso parecia ser a causa mais relevante no seu prognóstico. Seu único contato externo era justamente Vania.
_ Não foi bem assim, se foi por que não gostava mais de mim. Depois de dois anos de casamento, mal nos olhávamos. Foi morar com outra azarada. Risos...
Parecia ter pouca autoestima porém, era engraçada e bem humorada.
Conversava tanto que, por vezes chegava a me confundir.
_Pare Margarida. Estamos saindo do assunto.
_É que não há mais assunto.
Daniel ficava pensando e pensando.
_ Aquela mulher era um emaranhado de informação. Difícil encontrar o foco.
Consultava seus colegas.
_Estas doutoradas tem problemas de relacionamento por conta dos complexos dos outros, não delas em si Daniel.
_Pois engana-se, Margarida não é doutorada, nem formada é...Mas é bem culta.
_ A questão pode estar ai mesmo. Acompanhe meu raciocínio, as pessoas em geral gostam de estar com seus iguais. Vamos ao relatório desta moça...
Margarida é moça simples. Vive uma vida simples, casa com um homem também simples. Porém quando a conhece melhor, ele nota que ela não é tão simples assim. Isso complica.
Quando o marido percebe que ela é inteligente a princípio fica muito orgulhoso de sua esposinha, mas isso pode confrontar com suas inseguranças com o passar do tempo, abalando a relação.
_Ele a deixou por ela ser inteligente! Opsss...
_Ele a deixou por se sentir inferiorizado.
_Ele foi viver com outra(igual) e ela, Margarida, se sentindo culpada se isolou.
Daniel ficava pensando demais nela... Parece forte, e no entanto...
Um dia tomou iniciativa e decidiu. _Hoje será nossa ultima consulta...
_Como! Estou boa já!?
_Você nunca esteve doente.
_E o que faço com meus medos todos? Por que está me dispensando?
_Por que nossas conversas são ótimas e me sinto culpado de cobrá-las.
Você tem tanta coisa boa dentro da cabeça que isto está virando distração e não tratamento.
Vai fazer algo por quem precisa Margarida, tenho uma amiga que gostaria que conhecesse.
Ela trabalha com crianças carentes e precisa muito de voluntárias, quer?
Seu problema é solidão Margarida. E seu maior medo é magoar quem gosta e disso, todos corremos risco.
Não pode evitar ser quem é, como não pode também mudar os que a cerca. O isolamento não é boa opção acredite. Na melhor das hipóteses nos asseguramos todos de uma coisa, o respeito mútuo.
Há pessoas que precisam e podem gostar muito, tenho certeza, de você.
A partir de hoje não sou mais seu médico, você vai sobreviver. Boa sorte. Cumprimentando-a conduziu até a saída. 
O tempo foi passando e Daniel não soube mais de Margarida, podia ter ligado para ela...Não, não podia. A ética não permitiria.
Certa vez  o jovem Dr. foi a uma entrevista de voluntariado numa ONG(organização não governamental), um destes lares, onde as crianças tem mães adotivas, enquanto adentrava os portões da instituição teve a vaga impressão de ver  Margarida, claro que devia ser impressão esta parecia bem mais jovem  e corria com as crianças pelo gramado feito uma adolescente.
Estava atrasado, perdera tempo precioso no transito e a diretoria do abrigo o aguardava.
_Bom dia doutor Daniel.
A secretária anuncia sua chegada e o conduz a sala de reuniões. A surpresa do moço não podia ser maior. A sua frente estava..._ Margarida! Com um sorriso nos olhos ela o cumprimenta e convida a sentar-se.

Tudo acertado então...O doutor terapeuta daria expediente na instituição infantil três vezes por semana.
Margarida estava bem recuperada e feliz, fazendo algo por quem  realmente precisava dela. _Acho que deve ser isso o que importa, fazer algo construtivo.
Quando lembrava das palavras desdenhosas do ex-marido, ficava triste mas, pensava agora  que o problema era dele e não dela.
_Quando acordo pela manhã e vejo o mundo cinza, não me importo mais pois tenho as crianças que me esperam aqui, pode que elas não saibam porém, aqui temos trocas incríveis, dou um pouco para elas e sou recompensada em muita satisfação. Por intermédio delas vamos reconstruindo as cores do mundo que pode ser melhor ou menos feio.
Rever Margarida foi bom... Daniel não entende direito as coincidências da vida mas, algo lhe diz que os dois vão estar juntos, por algum tempo ainda. E pensar nisso, traz sensação de bem estar.

Guerreira Xue


Pintura de Jean Jacques Henner

Comentários

  1. Ai minha mais que querida amiga Hilda! Li e reli este teu texto Conseguiste dar-me um nó cego, porque sem saber para onde virar-me. Ele é tão pródigo de situações, que mais parece um texto cafkiano. Não o vou comentar, porque pade passar a ser um tabém dos meus medos :) :)
    Tens uma fértil imaginação, miúda. Continua assim.
    Também tenho os meus medos, que julgo conhederes, e são:

    Tenho medo de ter medo,
    medo do que desconheço,
    porque por medo me enredo,
    nos medos de que padeço.

    E tantos são os meus medos,
    medos ligados à morte,
    morte encerrando segredos,
    no Além, seu cofre forte.

    Medo do medo da vida,
    que é da morte, umbilical,
    e que depois de vivida,
    da morte é um seu portal.

    Pudesse eu juntar à morte,
    algo que à vida a prendesse
    a dotando de outro porte.
    que sua foice perdesse.

    Tenho medo de ter medo,
    mas no medo me aconchego,
    fingindo nele ser ledo,
    p'ró meu corpo ter sossego.

    Um abraço, jóia!

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  2. AINDA BEM QUE NÃO TENHO MEDOS, POR VEZES TENHO ISSO SIM...MEDO!! ORA COMO O AMIGO ZÉ LOUREIRO DISSE ESTA HISTÓRIA É MESMO DE LER E "CHORAR POR MAIS"; QUEM NÃO CONHECE SITUAÇÕES COMO A DA MARGARIDA E DO DR. DANIEL? TODOS NÓS NUMA SITUAÇÃO OU NOUTRA ATÉ NOS PODE-MOS REVER NESTA HISTÓRIA: ROTÚLOS DE INFÂNCIA, "NÃOS" MEDICINAIS OU ATÉ CENSURAS RELIGIOSAS, O QUE MAIS TARDE OU MAIS CEDO NOS LEVA A UMA TRISTEZA INDEFINIDA ATIRANDO-NOS PARA UM CONSULTÓRIO MÉDICO ONDE POR VEZES PAGA-MOS SÓ PARA NOS OUVIREM E POUCO MAIS.NO CASO DA MARGARIDA, RAPARIGA SIMPLES MAS CULTA, CULTURA NADA TEM A VER COM DOUTORAMENTOS, ALÉM DE TODOS OS RÓTULOS "NORMAIS" AINDA TEVE QUE ARCAR DURANTE DOIS ANOS COM MAIS UNS QUANTOS VINDOS DO HOMEM COM QUEM CASOU, PELO MENOS O DA INDIFERENÇA E O DA INFERIORIDADE, NÃP HÁ PACHORRA PARA TUDO ISTO!!! SORTE DELA TER ENCONTRADO DANIEL K ALÉM DE SER DOUTOR ERA CULTO E A SOUBE ENCAMINHAR PARA UM ESTILO DE VIDA, ONDE AS FRUSTAÇÕES NÃO TINHAM LUGAR NEM TEMPO, SENDO TUDO SUGADO POR AQUELAS CRIANÇAS SEM COISAS ALGUMA K SÓ DE AFECTO PRECISAVAM E K ELA TÃO LHES SOUBE DAR.
    ADOREI HILDA, BJS GRANDES

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  3. Também tenho meus medos... e por aí poderemos imaginar, que alguns dos nossos medos, não passa da falta de se ocupar.
    Imaginação intensa, querida Hilda,mexeu bastante com a minha... feliz com o final.

    beijos.

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